26 de fevereiro de 2025

A Décima Terceira Hora


Com Pano e humor das flores de hibisco, Amon, como Artesão escolheu ser chamado depois de se separar da sua madeira, fez sua obra-prima a Décima Terceira Hora e a preencheu com destinos.  

No tempo em que não passa ponteiros sobre números do relógio há uma balança construída sobre o galho rijo do flamboyant. Ela tem corda forte e madeira lisa para que seu filho com Nara brincasse. O ar que se respira lá é de pura risada.  

Nos segundos sem barulho dessa Hora tem um homem plantando em seu pedacinho de terra. Tem esposa e cinco filhos e mesmo ignorante às grandes questões que permeiam aquele instante, é feliz. Sandro é sua graça. 

Onde hora ou minuto nunca passa é que Anna casa-se com Carlos numa exagerada cerimônia no barracão da Boa Manhã sob aplausos do seu Honório e Conceição, além de funcionários e amigos. É a mãe de Carlos que leva uma imagem de Nossa Senhora Aparecida até Padre para o fim da cerimônia. Os noivos dão um beijo que tem gosto de vinho e forma de sorriso. 

— Não disse que nos veríamos de novo? — são as palavras da noiva após separar seus lábios dos do esposo. 


14 de janeiro de 2025

Vaza um Grito - Nunes Guerreiro

 


Concreto, poético e incrível

O poeta Nunes Guerreiro teve uma ideia simples e genial ao conceber a sua primeira obra: por que não ter um livro que as páginas pudessem ser livres? Pode parecer confuso usar a palavra livre aqui, mas é justamente isso que acontece em "Vaza um Grito". O livro é uma caixa, cujo conteúdo são poesias que ocupam uma página e que são soltas dentro da caixa. Não tem ordem de leitura, não tem número de página e elas podem ser dadas de presente se o dono desejar. 

Nas páginas livres você vai encontrar poesia sobre morte, pensar, permanecer, índio, guerra, território, amor. Pequenas, impactantes, maiores, concretas. A obra tem viés de poesia concreta e isso já é uma faceta desse poeta. Tanto que um dos fundadores do movimento Concretismo, Décio Pignatari, está no prefácio do livro. Tem outros nomes de peso indicando Vaza um Grito. 

O texto de Nunes Guerreiro é criativo, belo e simples. Uma poesia-arte não só na mensagem, mas na forma e no visual. Uma obra verdadeiramente artística. Como bem ponderou a filha do autor ele transpira poesia. 

Fica a breve resenha de um dos livros mais sensacionais que tive o privilégio de ler. Os meus (tenho três, dois inteiros em edições diferentes e um pela metade) estão assinados pelo autor.  

Abraço.    

6 de janeiro de 2025

Poesias de Cícero Alvernaz



A vida é poesia

Não é muito simples definir o que é poesia porque a sua matéria-prima é a beleza das coisas. Em "Poesias" o poeta Cícero Alvernaz parte dessa premissa para nos presentear com reflexões singulares sobre diversos temas. Tudo com muita sensibilidade, beleza e simplicidade.

Poesias é um livro especial, artesanal, que tive o privilégio de receber do autor (autografado e tudo) e que acabei demorando um pouco para terminar de ler. Perdi-o entre outros livros, mas, por estes dias consegui encontrá-lo e voltei à leitura. Melhor dizendo, recomecei a ler. Foi uma coisa boa, uma companhia agradável em uma noite de insônia.

São muitas poesias sobre temas variados como amor, família, Deus, caráter, sentimentos em idade madura, vida e morte, natureza, saudade que nos fazem refletir. Sempre em tom leve, o poeta tece suas considerações que não passam de uma página (um poema por página), o que não significa superficialidade. Cada poesia é marcada por sua data de nascimento, dando ao leitor uma dimensão do ritmo de produção do poeta. A vida parece inspirá-lo. Admiro quem diz muito com pouco e é o caso aqui.  

O material é simples, mas de bom acabamento, bem diagramado e corrigido. Tive que terminar de ler para poder dormir. 

Fica a breve resenha e a recomendação! 

Abraço.

9 de dezembro de 2024

O Nascimento de Ninguém

fonte da imagem


Pó e Sem Nome iam ao lado do caixão de Sandra de Junho em silêncio. A presença dos dois incomodava os carregadores de caixão, afinal, como gostavam de dizer, eles eram do depois, do tempo que estariam livres da obrigação de transportar falecidos ao descanso final. Além disso, havia certa rusga entre Fome e Sem Nome, o Fome livre.

— Queriam tanto a liberdade e agora nos acompanham? — Último Dia quebrou a quietude com a pergunta reclamação.

— Essa é a graça da liberdade, Último. Posso fazer o que quiser, até mesmo estar aqui com vocês — Pó respondeu despreocupado.

Artesão completou:

— Já estamos chegando ao Cemitério e vocês não poderão continuar nos seguindo sem as faixas da morte.

— Quem disse que queremos? — Pó deu de ombros. — Já estivemos muitas vezes lá.

— É essa mulher que carregamos, não é? — Nunca Mais perguntou — Tenho medo dela.

O portão de Cemitério ganhava tamanho e forma na frente dos carregadores. Ele estava aberto e eles entraram.

— Um caixão bonito — era Sandra que se encontrava ao lado daqueles que carregavam.

Artesão não demonstrou surpresa, afinal tinha transpassado os portões dos vivos e agora quem vinha dentro podia se desprender de sua casca.  

Foi assim que Sandra de Junho mudou de nome para Ninguém.

21 de outubro de 2024

A Água das Plantas


— Você vai aguar as minhas plantas, não vai?

— Vó, tem tanta coisa mais importante para se preocupar agora...

Luísa gesticulou negativamente após ouvir a resposta de Hélio. Para ela a água das plantas era a coisa mais importante do mundo, mesmo ali, talvez nos últimos momentos de sua vida. Quando terminasse o viver quem, afinal de contas, ficaria responsável pela samambaia?

O fim dos dias não era algo que a idosa temia, pois tinha se convencido de que além de inevitável era inútil sofrer com dúvidas e apegos materiais. Se Nossa Senhora estivesse lhe esperando de braços abertos como acreditava que estaria, seria o momento mais grandioso de sua existência; se não, não perderia nada, afinal não seria merecedora de tamanha graça e tudo estava bem. Na pior das hipóteses acreditava que a fé a fizera levar uma vida toda tendo boas condutas, o que já tinha valor em si mesmo. Então não temia por ela, mas pelo que deixava; pela água que faltaria e pela vida perdida junto da sua.  

A mulher de setenta e oito anos estava internada há vinte e dois dias em um dos leitos comuns da Santa Casa por causa de um tombo sofrido em sua cozinha. O diabetes estava elevado, o fêmur tinha se partido no tombo; o osso não calcificava e as escaras aumentavam a cada dia. Ali resgataram seu diagnóstico da última internação; trazendo exames antigos que mostravam um coração fraquinho. Após novos exames constataram que o problema não só persistia como havia se acentuado, fazendo com que Hélio acreditasse que ela não voltaria mais para casa. O neto não entendia a fixação da avó pelas plantas que deixara em casa. 

Luísa notou o semblante de incompreensão de Hélio após observar a decepção da vó ao ouvir dele que havia problemas maiores do que a água das plantas.  Reuniu forças para explicar-lhe que quando tinha quase a idade dele, uns vinte anos, a sua vó, Laura, lhe explicou que o vaso da sua samambaia era proveniente de uma outra espécie da planta, natural lá da Mata Atlântica que se chamava Samambaia Gigante. Eles cortam uma árvore grande e usam o tronco pra fazer vaso de xaxim. Então a samambaia vive no corpo de uma irmã morta. É como se a morte de uma fosse o espaço para as raízes da vida de outra... 

A samambaia de Laura ficava num vaso de xaxim na área da casa grande do sítio. Era uma planta que tinha um ritmo de vida calmo e belo. Devia ser irrigada de acordo com a umidade da terra em sua volta e ela gostava do úmido, mas não podia ficar encharcada. Nem muito molhado nem seco demais, o equilibro que se deve ter na vida, contou a avó à Luísa. 

— Ela me levava pra ver a planta. Me mostrava o dedo barrento para medir se precisava de mais água ou não, se estava saudável, se precisava de mais ou menos luz observando a folhagem queimada pelo sol. Ela me ensinava coisas com esses gestos simples.

A sabedoria dos antigos demonstrava que a samambaia tinha fases de vida; que ela não dava flor nem gerava sementes, mesmo assim dava esporos que podiam se tornar novas plantas. Para fazer mudas era necessário tirar uma touceira da samambaia e plantá-la em outro vaso.  Apesar de ser tão formidável, fora da natureza, a vida da samambaia estava nas mãos de quem detivesse o dom de dar-lhe água e luz do sol na quantidade certa. Era uma grande responsabilidade... 

— Quando a vó tava pra fazer o seu passamento ela fez o que tô fazendo agora. Me chamou lá no quarto dela e me perguntou se eu podia cuidar da samambaia pra ela. Fiz uma cara parecida com a sua, concluindo que era bobagem pensar na planta num momento como aquele. Apesar de fraquinha vó Laura sorriu com doçura e me deu sua última lição; a de que morrer fazia parte da vida e que não havia nada de ruim nisso; que ninguém reconhecia o xaxim que é o corpo de uma samambaia morta como um cadáver, mas como uma linda parte da samambaia. Ela queria ser lembrada assim: como algo que não fosse morto, mas que fizesse parte de uma coisa bonita. Enquanto eu fosse a samambaia ela seria o meu xaxim. Vi beleza nas palavras que ela me disse e aceitei o encargo com muita seriedade. Eu tinha vinte e quatro anos nessa época e nem era casada ainda.

Mas com o passar dos anos o encanto das palavras de Laura foram sumindo entre os afazeres cotidianos. Tornou-se difícil ter o cuidado especial que a vó queria que Luísa tivesse com a planta. O casamento, a mudança para cidade, os filhos e afazeres domésticos, as turmas da escola, tudo isso foi diminuindo as visitas à velha casa do sítio que era o lar da samambaia. 

Certa vez, quando passou lá para ver a planta ela quase chorou. A samambaia estava com folhas amarelas, galhos secando e fraquinhos. A culpa por esquecer da promessa que fizera à mãe de seu pai, pessoa tão carinhosa, simples e sábia que existia agora em lembranças e nas folhas da samambaia a deixou muito triste. 

Laura foi uma mulher que viveu a vida toda na roça, primeiro trabalhando na pequena propriedade de seus pais com seus irmãos; depois naquela casa ao lado do marido cuidando dos nove filhos. O lugar mais distante que conheceu em vida foi a cidade de Aparecida do Norte, onde ia vez em quando em romaria. Não tinha mais um corpo, mas de alguma forma vivia naquela área abandonada; dava quase para sentir o cheiro dela, sua presença tão calma tal qual a samambaia. Seu sorriso de olhos fechados e lábios marcados pelo tempo tão verdadeiro que fazia inveja a qualquer riso novo. Vovó tinha um quê de planta, lembrou com saudade Luísa.   

 — Eu sabia que as mudas iam bem se a planta estivesse saudável para tirar touceira, mas imaginei que a parte ainda verdinha poderia dar uma boa muda. Então tirei uma parte do velho xaxim com cuidado e plantei em um vaso de cerâmica. Coloquei num lugar que sabia que recebia boa luz durante o dia, perto da mãe-samambaia doente. Pedi em reza pra vó me ajudar a salvar a samambaia.  

Preocupada, Luísa passou a ir duas vezes na semana ao sítio para ver a samambaia, conferindo se o sol estava sendo suficiente e mantendo a irrigação em equilíbrio. Ela não queria que as plantas morressem, afinal de contas ela era a samambaia e a vó o xaxim.  A separação da parte boa não evitou que a parte original secasse, mas salvou um pedaço da planta que manteve o verde-bonito que tinha dos tempos de Laura e cresceu, estendendo seus galhos pelo vaso num grande leque vistoso. Luísa sabia que a samambaia podia chegar aos cento e cinquenta anos. Era uma forma de manter a vozinha viva por bastante tempo.  

A cidade não era distante. As visitas ao sítio se tornaram rotina e logo a nova samambaia da vó Laura ganhou companhia de outras plantas. Rosa normal, rosa do deserto, vinca de diversas cores que floriam em tempos diversos e deixavam um cheiro gostoso no ar. As plantinhas traziam paz ao coração da professora, disse, certa vez, a um vizinho de cerca. Elas eram tão certas no mundo, ocupavam espaço com delicadeza e sutileza sobre o chão ou nos vasos, parecendo pintadas à mão pelo criador. Que bonito era vê-las em um entardecer, acariciadas pelo vento fresco do início da primavera!    

Quando o vô Chico foi morar com Deus, Luísa ficou muito triste e quase secou também. Lembrou-se das palavras de vó Laura sobre o fim e de que o marido agora não precisava ser morto. As obras dele estavam vivas no caráter dos filhos, na felicidade dos netos e nas boas ações relembradas por amigos. Era ele agora xaxim também e quando fosse a vez dela, aceitaria em paz. Por outro lado, enquanto ainda não fosse xaxim poderia deixar a parte seca no vaso velho e transferir a parte verde a um novo local e ainda crescer. Aposentada decidiu se mudar para o sítio mesmo seus filhos e netos não aprovando a ideia.

Foi bom de verdade ter sido plantada em terra. Viveu quase dez anos bem vividos apesar do coração cansado que o médico disse que não tinha mais que seis meses de validade numa das vezes que passou mal. Ali de galhos secos e quase sem vida, pronta para ser xaxim queria que Hélio fosse sua samambaia nova.


2 de setembro de 2024

Lição



O professor fez cara feia ao ouvir do aluno que recebia seu trabalho de volta com a devida correção e nota:

— Melhor feito do que perfeito!