28 de novembro de 2018

O que define uma vassoura




Treze estacionou sua moto na garagem do condomínio em que residia na periferia da cidade. O local era ideal para alguém como ele que podia pagar adiantado em troca de discrição. Retirou o capacete, deixando visível os cabelos presos por um coque. Galgou os degraus do edifício sem elevador, abriu a porta carcomida de cupins e entrou. Jogou o capacete no chão de carpete, abaixou o zíper do macacão negro e colado ao pequeno corpo e se despiu. 
Observou algumas das suas tatuagens: textos escritos ao contrário; que só podiam ser lidos em frente ao espelho e fontes de informações sobre quem fora e o que podia fazer. Como seriam as próximas anotações invertidas? 
“Pense em um nome, já que não é mais um Coletor da Copas. Isto mesmo, você traiu aqueles que te criaram”. 
Por ora era apenas isto que Treze pensaria em registrar. 
Caminhou até o espelho grande que ocupava toda a parede da sala. Fitou o próprio rosto ainda estranho aos olhos. Não, aqueles olhos também não eram mais os seus. Aqueles olhos que se tornaram azuis, aquele nariz agora fino, levemente arrebitado, o queixo largo, as orelhas grandes que diminuíam de tamanho dia após dia. A cicatriz no meio do pescoço, aqueles lábios cada vez mais femininos, assim como a voz. 
Várias partes do grande espelho estavam preenchidas por frases escritas com pincel atômico. Quando se é o que Treze é, há a necessidade de anotar. Ela observou algumas anotações. Leu:
“Quem é você?”
“Tirando o cabo de uma vassoura, ela ainda será uma vassoura?”
“Onde fica a alma de um ser humano?”
“Ela ainda está aqui? Ela ainda está lá?”
Sempre dividido em dois, unido a outrem, um novo indivíduo. Somas e divisões que culminavam sempre em perda. Depois, o dolorido recomeço e quando as coisas finalmente entravam em harmonia vinha a ruptura mais uma vez. Era para ele ser perfeito, meticulosamente preparado para não cometer erros, por isso tantas vezes. 
Lembrou-se da ocasião em que dera um soco contra o espelho, os sinais ainda estavam no local. Na verdade, eram também registros importantes e serviam a mesma causa das anotações: defini-lo de alguma forma.  Deu as costas ao espelho e se sentou no sofá da sala. Agarrou algumas páginas que repousavam sobre a superfície e começou a estuda-las. 
O caso. Clara. Copas.

Paul Law, Mogi Guaçu, 04 de julho de 2018

13 de novembro de 2018

Ainda mais uma vez


O barulho do rádio chiando atraiu a atenção do motorista. Ele girou o botão para procurar uma nova estação, mas nenhuma parecia funcionar. As que sintonizavam, estavam exibindo “A Voz do Brasil” O programa falava da visita do Papa João Paulo II ao Brasil, marcada para o final do mês de junho. Seria a primeira visita do pontífice, mas Caio detestava religião. O jovem Promotor de Justiça acreditava em Deus, mas não na instituição Igreja; não nos padres e toda aquela ladainha de pecado. Girou no sentido anti-horário para procurar uma nova estação de rádio. Nada de novo. Pense, não faz sentido Deus se importar com as atitudes humanas. Tem que haver algo mais importante; que dure; seja intenso para valer a atenção de Deus. E outra se Deus é onisciente, sabe das limitações dos homens e concorda com elas. E para botar um fim na discussão, se Ele é bom, certamente não colocaria atravessadores no caminho daqueles que desejam se aproximar dele. Apesar de não ser pai, teve uma boa figura paterna com quem aprendeu que Deus era um pai. Simples assim: Deus é um pai que ama seu filho. Como todo ser que ama quer sempre o bem do amado. Sabe respeitar, se colocar no lugar dos outros. Só vai ajudar se o pedido for sincero.
Depois de desistir de encontrar uma estação que não estivesse exibindo o programa obrigatório, pegou no porta-luvas do Opala 76 uma caixinha de k7, impaciente. O som de freada brusca, tirou Caio dos devaneios relacionados ao rádio e religião. Levantou os olhos e focalizou o Chevette negro parado a frente. Pisou no freio com toda a força do mundo, rezando para que desse tempo de parar o automóvel antes da colisão. Os pneus travaram e seu carro derrapou um pouco, perdendo a traseira, mas não o suficiente para tirá-lo da pista. Parou muito próximo do veículo atravessado na marginal, ouvindo parte de uma notícia qualquer na rádio sintonizada. A fumaça da frenagem brusca foi se dissipando enquanto Caio entendia o que se passava. Levou a mão ao coldre embaixo do braço esquerdo, mas era tarde demais.        
A rajada de disparos contra o carro de Caio foi observada da calçada por Aida. Ela pensava no triste destino do jovem Promotor que estava tão próximo de desmantelar um esquema municipal de desvio de dinheiro público. Um daqueles que parecem uma linha solta de uma camisa. Você vai puxando a linha, desfazendo a costura e estragando a roupa toda. Quando mais a linha fosse puxada mais pessoas seriam descobertas, mais esquemas e regiões envolvidas.
Alguém cortou a linha. Não era a primeira vez, não seria a última.
Apenas em algumas ocasiões Caio tem uma vida longa que termina em uma cama quente rodeada de bons amigos e parentes. Na maioria das vezes, morre jovem por causa de algum envolvimento político ou jurídico. Ele tenta evitar, mas está em seu DNA, está em sua alma, chame do que preferir, se importar; se envolver e ser silenciado. Aida já o viu nesta situação inúmeras vezes. Ele não aprende? O que o motiva a ser tão tolo?
O carro dos bandidos sai acelerado, o do Promotor, imóvel. 
Aida puxa o anel do anelar esquerdo, desaparece. 
Ela retorna ao Oito, gosta de imaginar que é manhã, embora sempre seja meio-dia. Em frente há uma mesa de madeira que precisa ser envernizada, cuja superfície está cheia de anéis dourados ou prateados. Sobre eles há um homem. Um homem velho, miúdo e careca, de óculos com lentes grossas. Ao notá-la, ele ergue o rosto e retira os óculos. As chamas das velas que iluminam o local tremulam.
— Como foi dessa vez?
Aida coloca o anel em cima da mesa. Diz:
— Assassinato.
O velho sorri. Ele pinça com delicadeza a joia deixada por Aida.
— Cada um deles é único. Há trilhões, todos diferentes, você sabe. Além disso, podem alterar seus futuros por escolhas! Não é belíssimo?
— De fato, mas não consigo compreender certas escolhas. 
— É por isso que os estudamos! Eu lustro, dou brilho mantenho todos guardados e vocês usam — Bento devolve a joia com cuidado à mesa.
— Descansarei por enquanto, mas logo volto para pegar o anel para nova tentativa. 
— Ele estará como novo quando voltar. 
— Agradecida.

Paul Law, Mogi Guaçu, 1 de novembro de 2018.