28 de fevereiro de 2024

Que tal?


Um recipiente que mantém o que é colocado nele mesmo que o conteúdo seja retirado, que tal? Uma caixa sempre cheia, um pacote a ser aberto, uma garrafa que nunca se esvazia. Por mais que tirem da caixa ela sempre terá mais para ser retirado; ainda que desembrulhem o pacote, fiquem contente e peguem o que tem nele, ainda assim parecerá um novo presente se observado novamente.  Copos cheios e mesmo assim a garrafa continua cheia. Por mais que eu beba ainda haverá bebida. Eu que não gosto de que as coisas terminem, diminuam ou mude. Eu que só vou embora após o último gole, jamais terei de partir. Viverei inebriada, feliz, eu mesma, sem amanhã, sem ressaca. Sem tristeza. Sem fim.

9 de fevereiro de 2024

Fiz alguma coisa

 (Crédito: Instagram Porte Engenharia e Urbanismo)

Bem, eu não sou boa com essas coisas de escrever, você sabe, Cass. Mesmo assim, achei que devia uma explicação e esta explicação tinha que ser pra você. Tomei o cuidado de não colocar o meu nome como remetente, mas o endereço que está na carta é o meu lar atual. Use caso precise me escrever, mas não conte a ninguém por enquanto. Estou bem, sério. Primeiro: eu não fugi, mas não compensa explicar o que aconteceu. Você precisa saber é que outra coisa extraordinária ocorreu e me fez sair do Guaçu e ir parar no meio do mato, no Maranhão. Depois disso, segui viagem com um caminhoneiro que, veja você, chama-se Cristiano. Só que ele é bem diferente do Cris que era meu marido. É um cara legal. Estou agora na casa dele, acredita? Depois que cheguei a esta cidade, disse ao meu companheiro de viagem que eu não tinha lugar para ir. Ele me apresentou à família dele e acabou que estou morando com eles. Você é minha prima e amiga, sabe disso não é? Então, por isso vou te contar uma história que explica mais ou menos o que eu estou fazendo.

Talita é uma dessas meninas que publica tudo o que faz nas redes sociais. Ela faz academia, frequenta lugares chiques e se relaciona com gente cheia da grana. Foi até rainha do rodeio aqui de BH. Tem vinte e três anos, morena alta, cabelos lisos (que inveja!) e olhos azuis. Ah, e tem um namorado, o Júlio, um playboy filho de Juiz de Direito. Um casal muito bonito, você tinha que ver nas filmagens do elevador que registrou os últimos momentos de Talita. 

Estou colocando a carroça na frente dos bois, desculpe. 

O Júlio, tem vinte e cinco anos, musculoso, veste-se muito bem, tem dinheiro. O problema dele é que costuma ser violento quando é contrariado. Gosta de ser violento com quem é mais fraco do que ele, compreende? Tem passagens por agressões à antigas namoradas e sua carteira de motorista está caçada por causa de dirigir embriagado. O que Talita tem na cabeça ao se relacionar com um cara desses? Eu não posso julgá-la você sabe... 

Então, uma bela noite num dos lugares chique de costume Júlio percebe que um outro cara está trocando olhares com sua garota. Na cabeça dele, ela está correspondendo. Ele fica furioso com Talita; eles brigam no local mesmo. Que deselegante. A discussão continua no carro de luxo do rapaz, ele está bêbado e sem carteira de motorista, mas quem liga? Júlio é filho de Juiz. O carro avança até a garagem do condomínio de luxo de Júlio. Estaciona, eles continuam brigando. Talita desce do carro, nervosa. Diz que não quer mais se relacionar com Júlio. Ele não aceita e a agarra pelo braço, gritando que é por causa do sujeito na festa que ela está terminando o namoro. Ela tenta guardar o medo nos cantos dos olhos, mas é muito para não deixar escapar algum. Ele gosta da sensação de provocar medo. Júlio empurra Talita, ela tropeça e cai de joelhos. Por alguns segundos ela fica ali, de quatro, sem saber o que fazer. É madrugada, não há ninguém no estacionamento. Decide fugir, correndo. Consegue ouvir o chacoalhar das joias da moça? O som do seu sapato de salto pelo chão do estacionamento? São poucos os passos, infelizmente. Júlio é mais rápido, forte e logo alcança Talita, a agarra pelas costas e a levanta do chão. A garota chacoalha as pernas suspensas e grita, apavorada. Eles voltam para perto do carro. Ele a empurra contra a parede. Ela sangra pelo nariz. Então, nesse momento ela percebe que pode ser perigoso estar ali com aquele cara. Júlio, por sua vez, nota que transpassou uma linha que não deveria ser transpassada; que não havia mais volta; que se fosse preso novamente por agressão não teria como escapar da cadeia. Tudo é muito rápido na cabeça entorpecida e imprudente daquele rapaz. Fecha o punho direito e desfere um poderoso soco contra o rosto de Talita. Mais sangue e agora lágrimas. Júlio fica mais desesperado e dispara vários socos. Quando Talita está no chão, ele começa a chutá-la nas costas, no rosto, nas pernas. Desmaie, vamos!  Demora para isso acontecer, mas finalmente Talita perde a consciência. Está morta? O que fazer? 

A adrenalina começa a baixar, Júlio passa a mão sobre os cabelos, anda para um lado, para outro. Agarra o corpo de Talita e entra no elevador do prédio. Ao chegar no seu andar, um dos últimos, deixa o elevador parado. Com dificuldade, consegue colocar a chave na fechadura do seu apartamento, abre a porta e despeja Talita no carpete da sala. Vai à lavanderia, pega um pano, molha no tanque e volta ao elevador. Depois de tudo limpo, Júlio retorna ao seu lar. Ele está mais tranquilo agora, acha que pode fazer aquilo; que dará certo. Volta-se para Talita no chão de sua sala e a pega novamente. Vai ao banheiro, tira a roupa dela, abre o chuveiro. Lava todo o sangue do rosto da namorada. Tudo ok, Júlio a enxuga e a veste com uma roupa limpa que a namorada deixava em sua casa. Está quase pronto, pensa ao deixar o banheiro e Talita. 

Júlio vai até a sala, liga a TV, passeia pelos canais por alguns minutos. Depois, sobe no sofá, abre a grande janela de vidro, as cortinas começam a dançar. Volta ao banheiro e agarra Talita pela última vez. Dirige-se até a sala, até a janela e a despeja. A queda do décimo quinto andar faz um barulho único. Um baque final, um pequeno quique que separou estar vivo de começar a morrer. Não sei, mas acho que Talita começou a morrer bem antes. É bem difícil estabelecer um momento certo para o início da morte. Sei que ao tocar a calçada com a violência de toda aquela gravidade, marcou o fim do processo de morte. Ela morreu, se matou, foi o que disse Júlio aos policiais depois de falar com o pai. Tudo ia ficar bem. 

Eu tentei esquecer essa história, Cass. Juro que tentei. Só que não consegui, porque todo dia saía notícia sobre o caso. As notícias foram me ajudando a montar a história que te contei e a cada detalhe eu ficava mais indignada. Sempre soube que a Justiça trata diferente rico de pobre; Júlio respondia ao processo em liberdade, dá pra acreditar? Mesmo com toda a incoerência de sua versão, comparada à perícia e com todos os seus antecedentes! Resolvi que eu tinha que fazer alguma coisa. E eu fiz.


2 de fevereiro de 2024

Barulho de Grilo



A luz da área se acendeu. Sentado na mureta que circundava a casa, Artesão teve a atenção retirada das estrelas. Banhada pela luz amarela, sob o arco da porta da cozinha viu Nara. Ela tinha os cabelos castanhos armados, o olhar marrom sonolento, a boca rachada e algumas sardas sobre o nariz pontudo. Vestia uma camisa rosa, grande e rasgada no ombro direito. Ao final das pernas alvas aparecia o pé esquerdo descalço e o direito coberto por uma meia preta. O silêncio que Nara carregava no bolso descosturado da camisa caiu no chão por causa do barulho de grilo. Ela se aproximou de Artesão, agachou-se e o abraçou. Deu-lhe um beijo nas costas desnudas. O barulho de grilo sumiu. O construtor virou-se, sorriu, agarrando a mão cheia de calos da amada. Os olhos de ambos se encontraram sem obstáculos. Ele queria contar a ela que era árvore agora; que tinha encontrado paz, mas sabia que não precisava; que ela já sabia. 

11 de outubro de 2023

Pó de Café



Começava a amanhecer e ela ansiava por confirmar as suspeitas de que aquela seria uma manhã nublada e de ventos. Mão no queixo, unhas quase inexistentes por causa da mania de roê-las, pensou nas folhas que teria de juntar. Era segunda-feira e se preparava para retomar a rotina de auxiliar de limpeza de escola, emprego que sustentava há quase dez anos. Então, desfez a pose, tirou os olhos da janela e sacou um cigarro amassado do bolso da velha blusa. Subitamente Inês lembrou-se do pó de café.

Se quisesse tomar café teria que trazer pó, foi o que lhe informaram já no primeiro dia de trabalho, completando com a informação de que o a prefeitura não fornecia pacote do necessário para fazer a bebida matutina. Bete, a cozinheira da escola por muitos anos, foi quem disse? Paloma, a outra servente? Murilo, o inspetor? Bem, não se lembrava agora, mas sabia que podia ter sido qualquer um dos três. Eles gostavam pra caramba de café.         

Além dos três, Camila, a vice-diretora, Néia, a terceira servente, Bruna, a secretária e Sérgio que estava lá quase todos os dias, embora Inês não soubesse explicar o que ele fazia, tomavam café. Adriana, ajudante da Bete, não tomava.

Inês abriu a portinhola do armário de dispensa torcendo para encontrar um pacote pela metade ou menos; que desse, apenas dessa vez, para fazer uma garrafa do viciante líquido negro. Mexeu nos pacotes de bolacha, nos de fubá, feijão, mas nada de pó de café. Isso não acontecia em outros tempos... 

Bem, é que nos primeiros meses, talvez primeiro ano todo, na tentativa de agradar aos colegas, Inês repunha por sua conta o material indispensável à feitura da bebida matutina. Os demais funcionários percebendo a benevolência ou ingenuidade da jovem faxineira que não fazia conta de quanto bebia e de quando precisava repor o estoque de café, começaram a não se preocupar em contribuir. Com isso, Inês passou a ter um gasto sensível com o cafezinho de todas as manhãs. E quando demorava um pouco mais para abastecer o armário acontecia de ser cobrada por Adriana ou Bete; e ela odiava ficar devendo para quem ou o que fosse. E ia logo comprar mais pó de café.                   

Inês era de Minas, tinha uma filha, mas não havia se casado. Após o falecimento da mãe, o pai vendeu o sítio e a família foi morar em Andradas. Menos de seis meses ela passou no concurso e alugou uma casinha para viver por ali com a filha. Na época dos primeiros problemas com o pó de café ela estava começando a conhecer pessoas e lugares por conta própria.

— Deixa de ser besta, Inês! — um dia lhe falou Paloma. — Esse povo aí tudo bebe o seu café. Ninguém compra... 

 As palavras da companheira de profissão mexeram com a servente. Besta ela? Sabia que pagava mais do que bebia e que havia aqueles que não pagavam nada e bebiam muito, mas era ruim ser boa? Besta? Será que eles não pagavam por que sabiam que ela pagaria? O Sérgio tinha um carro desses grandes, bonitos. Certamente ele poderia comprar pó de café sem que isso lhe causasse problemas financeiros. A Néia, escutou que ia se casar e já tinha reservado um salão de festas chique. Outros, ouvia que iam a shows, barzinho, trocavam de celular. E ela? Não tinha pretendentes, não tinha carro nem casa e o telefone pessoal era desses que ainda tinham teclas. Não era convidada pelos colegas de serviço para festas nem parecia ser querida por eles. Era quase invisível... E outra: a despesa com o pó (que deveria ser dividida entre todos) era sentida no fim do mês. Aluguel, escola integral da filha, água, luz, comida. Pela primeira vez na vida Inês se sentiu tola, enganada e usada. 

A constatação causou-lhe tristeza. Passou a remoer a palavra besta dita por Paloma nos dias seguintes. Via-a com nitidez toda vez que encontrava alguém abrindo a garrafa e bebericando o seu café. Sorrisos com o seu café, bom dia com o seu café, viagens com o seu café, casamentos, amores, promoções. O café era seu, a felicidade, dos outros. 

Foi ficando cada vez mais triste, sozinha, sem palavras ou vontade. Respondia só o que lhe perguntavam, não puxava prosa, não aumentava as puxadas. 

Um dia enquanto lavava um banheiro escutou Néia fofocando com a Bete.

— Viu, que tem a Inês? — perguntou Néia.  

— Não sei, mas melhor assim. Não suporto as conversas dela de roça. Entendo nada e ela nem sabe falar direito — respondeu Bete.

Inês segurou o choro que quis escapulir pelo canto dos olhos. Sabia que era simples, mas não que tinha problema no modo de se comunicar. Aguentou firme, terminou o trabalho e prometeu a si mesma que nunca mais falaria com alguém daquela escola. Ah, e, também, não compraria mais a porra do pó de café! 

A promessa de não conversar com colegas de trabalho não durou muito por circunstâncias práticas do cargo que ocupava, mas a mudança de comportamento, sobretudo o abandono do encargo com os pacotes embalados a vácuo, sim, tiveram efeito.

O pó faltou, perguntaram dele; perguntaram dela. Ela justificou:

— Acabou.

Conto publicado originalmente na Antologia “Benfeitores Litero Cultural da Humanidade”, republicado no livro "Treze Contos num Livro Nunca Visto". 

28 de junho de 2023

Meu primeiro livro de contos chega logo!

É isso mesmo que você viu no título da postagem. Vou lançar um livro de contos e ele chega já dia 30/06/2023 em formato e-book. Por enquanto só assim, mas logo, penso que em dois meses, eu o terei fisicamente. 

Veja só a capa lindona: 

Agora a sinopse pra você se interessar:

A história de um cara que ressuscitou ao lado do seu pior inimigo, a do morador de rua capaz de prever acontecimentos, a do jovem que nunca conheceu seu pai, mas acreditava que ele morava ali mesmo no bairro, sem falar na do sujeito que ficou vários dias dentro de um buraco depois de cair de bêbado, do relógio que mudou a vida de um neto ou da auxiliar de limpeza que sempre trazia o pó de café ao local em que trabalhava, fazem parte desse livro de contos.  

São treze histórias num livro nunca visto até agora. Breves recortes que exploram nossos medos, ambições e frustrações. Com um pé no fantástico, quase sempre sem final feliz, nos fazem pensar um pouco na condição de ser humano. 

Você já pensou no que vai fazer quando descer à mansão dos mortos?

E que tal uma imagem do livro físico?


  

Não é o máximo? Ah, aqui vai o link do livro no Amazon BR pra adquirir o e-book que está em pré-venda:


Baratinho, menos de dez contos.
Um abraço e até logo!

Paul 

23 de maio de 2023

Vem aí o 1º Festival Geek de Mogi Mirim

 


Vai rolar no próximo domingo, dia 28 de maio, o 1º Don't Panic, Festival Geek de Mogi Mirim lá na sede do ICA,  na Avenida Brasília, n.º 350 - Loteamento Nova Mogi, Mogi Mirim/SP. Vai ter muita coisa legal no evento, como apresentação de kung-fu, concurso de kpop, apresentação de bandas concurso de cosplay e roda de autores. 

Sabe o que é mais legal? Eu vou estar lá! Olha só: 


Ao lado de outros amigos autores vamos participar da roda e mostrar nossos livros, não é o máximo? Então, você já tem compromisso para domingo. 

Só lembrando que a entrada custará R$15,00 + 1 quilo de alimento. As doações serão revertidas ao ICA, o local sede do evento. 

Vamos?