20 de outubro de 2021

O Artesão


 

A primeira coisa que fez Artesão foi conceber o Relógio. Ele criou doze reinos que chamou de Hora; dentro desses reinos, criou povoados sob o nome de Minuto que, por sua vez, foram divididos em cada propriedade chamada Segundo. Assim, deu a cada humano um pedacinho de terra, dentro de um monte maior que se dividia em doze iguais.    

No entanto, alguma coisa, cuja explicação lhe fugia totalmente, fez surgir rei de determinada Hora ou general em outra. Minuto ocupado por um dono e Segundo sendo anexado a outro, formando grandes propriedades e humanos submissos. Tal fenômeno por carecer de melhor definição ficou conhecido como guerra. Aquilo que além de imprevisto, fugia-lhe do controle, reorganizava sua obra de um modo desigual e injusto. Matutou se ao final de muitas guerras sobraria mais de uma Hora. 

Após constatar o fracasso do primeiro projeto, o criador pensou em um modo de evitar novas guerras. Não seria justo dar ao dono de algum Segundo uma maneira de se defender ainda que seu opressor fosse mais forte do que ele? Criou, então, espadas, escudos, facas e rifles que disparavam um projétil. Repartiu a criação entre os dominados. Mais uma vez, contudo, o engenho humano surpreendeu-lhe. Reis e generais estudaram as criações de Artesão, as tomaram para si e as melhoraram, concebendo espadas mais afiadas e armas de fogo capazes de disparar vários projéteis; canhões que derrubavam castelos. Aprenderam a usar cavalos para se moverem com mais rapidez. 

Notando que suas tentativas de criar no fim viravam destruir, decidiu abandonar o ofício e se estabelecer em um Segundo qualquer (um que ainda fosse pacífico). Escolheu o Trigésimo Quarto Segundo do Décimo Oitavo Minuto da Quarta Hora para construir uma humilde casa e manusear a terra, imaginando ser ela, ao contrário da humanidade, segura. Vivia bem, esquecendo-se do que, por sua culpa, acontecia ao redor até o dia em que viu Nara na propriedade vizinha. 


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15 de outubro de 2021

Sobre o medo


 

— Bem, é uma proposta tentadora. O único problema é que tenho um pouco de medo. Acho que um tiquinho de receio não faz mal a ninguém. Ser prudente, não correr riscos desnecessários... 

— Que graça há em viver cauteloso? 

— Nenhuma, tem razão. É que o medo é uma defesa da gente; um modo natural de proteção. Dois são os maiores objetivos de uma existência, a senhorita terá de me dar razão. Um deles é o da sobrevivência, o outro o da procriação. Somos como plantas: nascemos, crescemos, damos sementes e morremos. Até que tudo isto seja feito, precisamos nos manter vivos, daí a necessidade da autopreservação, do medo. 

— Devo discordar. Não tenho filhos, nem vontade de tê-los e não me acho descumpridora do destino da humanidade. Sou uma gloriosa guerreira que busca companheiros de aventura! 

— Certamente. Quando disse que são dois os objetivos da vida humana, fiz distinção desnecessária. Na verdade, é apenas um; é que o outro está dentro deste um. O único propósito humano é a sobrevivência. A procriação é uma forma de sobreviver, concorda?

— Não sou uma mulher de filosofar, senhor. Temos pouco tempo e sei que negou todas as outras pretendentes porque esperava uma que fosse especial; uma que fosse como os heróis dos livros que tanto gosta de ler. 

— Não seria má ideia experimentar um pouco de aventura mesmo sem casamento.

— Ouço o trotar de cavalos; os gritos de homens, o tilintar do aço de espada! Espere-me Alexandre, pois logo estarei contigo!

8 de outubro de 2021

Revelações de Maria Falsa


Maria Falsa se sentou à sombra de uma árvore e pediu aos seus amigos que fizessem o mesmo. Todos silentes, a mulher começou dizendo que depois do nascimento ela e suas duas irmãs cresceram felizes sob os cuidados da rainha Helenna. Conforme os anos avançaram coisas novas começaram a ser observadas no reinado. O rei Mario foi um dos primeiros a notar a mudança de seu corpo, a alteração da coloração de seus cabelos. Consultou Flora e ele lhe explicou que aquilo era normal, que tal qual as plantas, os seres humanos mudam. Nascem, desenvolvem-se e perecem. Informou ao rei que aquilo era uma consequência do nascimento de Morte; que em breve ela teria o seu próprio reino, e que até mesmo o rei seria um dos seus súditos um dia. O pai de Maria Falsa pouco compreendeu e até achou conveniente que sua filha fosse rainha. Outra novidade, esta atribuída a ela Maria Falsa, foi o surgimento da capacidade de mentir e com ela grande confusão. Como, agora, podiam dizer algo que não havia acontecido? Que mágica havia no mundo, capaz de conferir a incrível habilidade de inventar uma história que jamais se concretizou? Flora explicou ao velho rei que aquilo também era natural e que sem a imaginação a vida seria muito chata; que mentir pode ser bom em alguns casos. Outra vez o rei se viu confuso e já começava a se arrepender de ter pedido ajuda ao sábio para concepção de suas filhas. Então, veio a terceira e última consequência: a Justiça. Sim, atribuída à Julia, a Justiça fez com que os súditos passassem a pensar mais nos outros. Levassem em consideração se seus atos não prejudicariam outras pessoas; se podiam roubar, agredir, realizar guerras. Mais uma vez, Mario foi ter com o seu sábio e Flora lhe disse que este era o melhor dos nascimentos! Com a Justiça no mundo, tudo seria dividido corretamente e não faltaria nada a ninguém.

Os anos foram ensinando Mario e Helenna a lidarem com suas filhas e as mudanças. O mesmo se via com os súditos e soldados. Mentiam com naturalidade, mas apenas quando a verdade fosse causar dor a alguém. Condenavam assassinatos que, descobriram, povoavam o reino de Finda. Aqui é preciso explicar que o reinado da jovem filha do rei se deu em terras invisíveis aos olhos dos vivos. Segundo a menina, tratava-se de um local muito parecido com o reino de seu pai, no qual ela reinava soberana. Quem chegasse aos seus domínios, em regra seria incapaz de deixá-lo. Se o deixasse, não podia dizer aos vivos como era estar no Outro Mundo, sob pena de exílio no Vale do Esquecimento. O esquecimento, por sua vez, era a pior das coisas que poderiam acontecer a um morto, já que lhe custava a existência. A verdade é que com o avanço do tempo, Finda Perecida foi se distanciando dos seus parentes, permanecendo quase que exclusivamente em seu próprio reino, cuidando de seus afazeres.

Então, chegou o dia do passamento da rainha Helenna, mãe de Maria. Certamente o dia mais triste de todos. Como aconteceu? Bem, Maria Falsa não sabia descrever os detalhes, pois a mãe morreu dormindo e Finda não lhe contou nada. Julia não achou justo e se perguntou por que as pessoas que amamos tinham que nos deixar. Não era coerente que algo assim fosse possível. Maria percebeu que a relação entre os membros de sua família ficou abalada após a tragédia, já que seu pai culpou sua irmã Morte pela perda da esposa, acusação que Finda não se preocupou em rebater. Limitou-se a dizer que em breve o pai se juntaria a esposa; era inevitável que todos se tornassem seus súditos um dia, sendo ela a maior rainha de todas. Que terrível filha Morte se tornou, confessou Mario certa vez. Que triste sina esta que veio ao mundo através dos galhos secos daquela maldita árvore gerada pela semente de Flora! Como o esperado, Finda Perecida passou a não ser bem-vinda no reino do pai, tornando-se Julia a preferida do monarca a suceder-lhe ao trono. Era preciso, no entanto, encontrar um marido.


Trecho de Ester 4ª edição.