28 de janeiro de 2022

O Cheiro do Ralo

 


A vida é dura

A primeira coisa que lembrei ao me deparar com este livro foi do filme homônimo estrelado pelo ator Selton Mello. Vi uns pedaços, mas não fazia ideia do que se tratava e nem me interessei muito. O livro, bem, foi diferente. Que história maluca! 

Lourenço Mutarelli nos apresenta um comprador de utensílios usados que é a cara do sujeito que fazia o comercial do Bombril que explora as pessoas necessitadas. O nosso homem é um sujeito de quase quarenta anos, culto, de posses, que tem um problema com o ralo do banheiro de seu escritório. Por ele escapa um forte odor. Então, toda vez que entra alguém para vender algo, ele explica sobre o cheiro do ralo. Não estranhe o fato de o personagem principal não ter um nome, pois isso acontece com quase todos do livro.   

Ele está prestes a casar, mas a ideia não o deixa satisfeito. Aliás, o grande problema é isso: o que o deixaria satisfeito, feliz? Para ele tudo é tão igual, tão automático e previsível. Na verdade, nem tudo, há buscas que ainda valem a pena. Montar o seu pai, por exemplo, já que conseguiu o olho de vidro dele. Ah e tem a bunda... 

De leitura rápida e de frases curtas, sem nomes e sem descrições ou conectivos, o livro é meio que uma epopeia. Uma história em versos com abuso de pronomes.  O leitor vai identificando personagens sem nomes apenas pelas atitudes. E isso é muito legal e original!

O Lourenço Mutarelli é desenhista e escritor de hq e essas qualidades dão à obra uma roupagem peculiar. É uma produção artística de impacto sem melindre. É quase um quadrinho adulto...

O Cheiro do Ralo é uma história que foca na busca incessante por felicidade atrelada ao possuir, ao poder ao dominar. É um livro rápido de personagens sem nome que possuem histórias comuns, mas cheios de vida (ou cheios de falta dela se isso é possível), ambientado em uma cidade grande, mas num lugar pouco visto. É mesmo um conto sobre pessoas esquecidas... 

E o final, bom, ele é meio previsível, mas não desmerece o excelente trabalho do autor. 
Gostei e indico. Fica a resenha e a dica! 
   

6 de janeiro de 2022

Demônio Famoso



Famosa entra no palco. Traja roupa similar a de Benjamim, mas o rosto está com maquiagem de palhaço. Os cabelos dourados embaraçados. Ela caminha de um modo estranho, imitando passos de um homem desengonçado. Para próximo a cadeira em que o velho Benjamim está sentado. 

— Olá, como vai? Eu sou uma atriz e o meu personagem é um rapaz que passa a maior parte da peça sentado em uma cadeira. 

— Ora, quem quer enganar? És Famosa, a princesa que me quis como esposo em atos passados. Acha graça em me imitar? 

— Todos nós encenamos! Sou ela, sou ele, tanto faz. Meu objetivo ainda é claro, Benjamim. Eu quero ser lembrada. Quero ter uma biografia extensa, vários maridos, mansões, papéis notáveis. Quando o último dia chegar que seja anunciado em todos os lugares; que os meus fãs encham o velório; bandeira a meio mastro; luto oficial. O que vão falar de você depois que se for, já passou pela sua cabeça?

— Bem, eu não vou mentir. Já pensei. 

— Pois então, como quer ser lembrado? Não me venha com essa história de um menino e sua cadeira. Eu cogito coisas grandiosas para você. Digo isso sem nenhum ressentimento por não ter sido a escolhida, pois sei que se você for inesquecível, serei também. Raciocine comigo, vamos! Que tal ali jaz Benjamim o personagem pensante; aquele que se rebelou contra a história e criou o seu próprio destino; que estabeleceu casa num teatro, contratou atores e brincou de diretor e personagem. Um espécime único! 

— São suas palavras não minhas. Elas não contradizem o fato de eu ser o menino em uma cadeira.


Trecho do livro Respeitável Benjamim