23 de junho de 2014

Laranja Mecânica de Anthony Burgess

O lobo perde o pelo, perde o vício, mas o recupera.

O britânico Anthony Burgess faz crítica a sociedade de sua época ao mostrar uma juventude delinquente e exacerbadamente livre, cuja única preocupação é a necessidade de se divertir. Familiar? Atual? Triste? Tudo isso e mais ainda. Há um filme muito cultuado baseado na obra de Burgess e que leva o mesmo nome: Laranja Mecânica. Outra curiosidade é o fato de o tal filme inspirar o apelido da seleção da Holanda de futebol.   

A história se passa na Inglaterra, num período pós-guerra (anos 60) e narra as aventuras de um anti-herói chamado Alex e seus drugues (amigos). Escrito em primeira pessoa e de linguagem peculiar, uma mistura do Inglês com uma gíria chamada Nadsat, “Laranja Mecânica” é dividido em três grandes partes. Na primeira, conhecemos o protagonista, seus amigos, suas noites violentas. Crimes, drogas, liberdade e consequências. Na segunda, ficamos apenas com as consequências e uma cura para a violência que assola a sociedade. A tal cura é testada no nosso humilde narrador. Na terceira e última, as coisas se ajeitam e Alex descobre por si mesmo o que está lhe acontecendo.

Extremamente crítico, Burgess aborda o tema violência do ponto de vista de quem é violento. Esclarecendo o que o leva a agir de tal forma e envolvendo nas suas deduções o conceito de liberdade tão defendido ao longo dos anos. O narrador e seus questionáveis amigos cometem várias babarias, dentre elas uma que é baseada em fatos reais. Nas páginas de Laranja Mecânica há o relato de um estupro de uma jovem mulher de escritor. Pelo que se pode deduzir das informações contidas na internet, a mulher do escritor de Laranja Mecânica foi estuprada de verdade por soldados estadunidenses, vindo a falecer anos mais tarde, tal qual no livro, por não se recuperar psicologicamente do episódio.

A narração em dialeto regional dificulta, inicialmente, a leitura. Entretanto, com a habitualidade, as palavras estranhas passam a ser associadas corretamente e dão o efeito que o escritor almeja: o de parecer real; de ser característico do narrador e do seu mundo deturbado. As críticas sociais do escritor são atuais e podem servir de reflexão. Até onde é saudável ser livre? Até que ponto o Estado deve interferir na vida dos seus? Os fins justificam os meios? Os jovens vão crescer um dia?

Em suma, Laranja Mecânica é um livro atual, apesar de escrito no século passado. Uma interpretação assustadora e franca do que está por vir ou está aí hoje. Há quem pode sentir pena do Alex, por tudo que lhe aconteceu, mas não é para tanto. Há ainda quem pode sentir pena pelo que aconteceu ao autor do livro nas páginas do próprio livro e aqui refletimos sobre os nossos próprios medos. Os drugues, um dia, podem bater na nossa porta para fazerem o que fizeram com o autor? Que camaradas são esses? O que fica é que eles estão mais próximos do que nunca.

Fica a resenha e a dica.

Abraço.    

5 de junho de 2014

Conto: Serial Killer

 

Todo mundo sente medo, isso é uma verdade. Saber o que fazer com ele é que diferencia uma pessoa da outra; saber usá-lo. Eu sou um cara muito simples e não fico preso à filosofia. Eu atiro mesmo, mas com estilo. As vezes corto e o meu padrão é não ter padrão. Voltando a questão do medo, eu o pego e comparo com os das outras pessoas, geralmente mulheres. Daí, eu ganho.
Todo mundo quer saber o que se passa na cabeça de alguém que mata. As pessoas se preocupam mais com o porquê do que com o sofrimento da família do cadáver. Então, nós do ramo, somos importantes. Não vou mentir que faço com estilo para que observem e admirem. Me conforta saber que pelo menos eu, pensei com carinho no cadáver. Quer saber? Eu sou bom mesmo.
A mulher á minha frente virou os olhos. Ela me acha um babaca, eu sei. Não acredita em nada do que estou falando e a graça de tudo está aí. Quando eu disse que era um Serial Killer e que ia dar uma entrevista exclusiva para ela, tenho certeza que ela não imaginou isso. Não vejo seguranças nem policiais, mas estamos sendo filmados e ela se sente segura, eu me sentiria também. É um desafio.
— O senhor já matou quantas pessoas? — ela me pergunta.
Eu não vejo a questão por esta perspectiva. Números não me fazem bem. Já reparou que as pessoas possuem impulso por numerar tudo? Quanto de dinheiro você tem? Quantos amigos? Irmãos? E carros? Quantos você já matou? São sempre perguntas numéricas e as respostas também exigem números. Eu me recuso a responder com números; prefiro adjetivos, embora aqui sirva um advérbio. Para a questão uso “muitas”.
Ela desdenha.
— Não pode dizer o nome de uma vítima? Um local?
Você já começa a pergunta com “não”. Quer uma resposta negativa, mas eu sou avesso ao que querem.  Posso, claro. 
— Quem?
Você.
A plateia e a animadora riem. Eu também. Ela se levanta para fazer um mercham. Chama os comerciais e fora do ar me indaga:
— Acha mesmo que está convencendo alguém de que é um assassino em série? Faça-me um favor!
Eu não preciso convencer ninguém. Ela se senta, zonza. A plateia observa, os médicos da emissora entram e no rebuliço eu desapareço, mas sei contar o que aconteceu. Eu tinha planejado tudo.
Eis aí o que eu tinha falado inicialmente sobre o medo. É tudo uma questão de o que fazer com ele; de como nos defendemos ou ficamos desatentos por causa dele. A apresentadora estava tão cética de que eu era uma fraude que esqueceu seu copo d’água perto de mim. Deve ter sido um espetáculo e tanto que quase valia ser preso para assisti-lo. Minha esperança é que a gravação vaze…