26 de agosto de 2021

O lugar das coisas no mundo


As luzes se apagam de uma vez. Vozes da plateia são ouvidas. Primeiro moderadamente, depois mais alto. Alguns espectadores se levantam, está quente. É o fim? Um holofote se acende sobre a cadeira vazia no centro do palco. Passou-se tempo demais? 

Entra Gaspar, o policial do primeiro ato. 

— Aqui está ela — aponta para a cadeira. 

As luzes totais do palco se acendem. Gaspar se volta para o público. Fala:

— Depois que eu saí de cena, após conversar com Benjamim criança e prendê-lo, percebi sua esperteza e quis eu também me tornar culto. Fui ler e aprender para voltar e debater com ele, mas ao que parece, o jovenzinho sumiu. Sabem dele? 

Gaspar se senta. Continua:

— Já pensaram sobre o lugar das coisas no mundo? Tomemos por exemplo esta cadeira que cá está desde o início e que é muito confortável. Acham que ela está posicionada corretamente? Cadeira sabe que é cadeira, feita de madeira, montada pelo engenho humano para servir de assento? Eu penso que não e a acho feliz por ser assim. Já Benjamim é diferente, concordam? Ele sabe de onde veio e para onde vai, mas não é feliz. Então, talvez, só talvez, saber certas coisas nos causa tristeza. Saber que morreremos...


Trecho de "Respeitável Benjamim"


18 de agosto de 2021

É isso que as árvores fazem


Elisa chegou ao quintal em que se localizava Bernardo. Era tarde naquele espaço amplo, perto de um córrego de uma linda chácara. A família da adolescente residia ali sem pagar aluguel em troca de manter o local limpo para os patrões que só visitavam o lugar nas férias.

— Vamos continuar falando sobre conhecimento? — ela começou.

— Pois não — respondeu-lhe a árvore.

— Frequentei a escola, você sabe. Lá aprendi a fazer contas, a escrever palavras e o funcionamento do corpo humano. O das árvores também. Não acha importante saber todas essas coisas?

— Depende. No presente você usa as contas? Escreve palavras?

— Hoje falo com árvores.

— Pois então só precisa saber falar com árvores, Elisa. Eu, por exemplo, só sei ser árvore. Todo dia sou árvore.

— Já te disse que simplifica demais as coisas. Não sabe como é ser uma pessoa, Bernardo! Não tem como saber como é ser Elisa. Eu vou continuar mudando, crescendo.

— Ora, eu também mudei, cresci.

— Não dá pra ter uma conversa séria com você. Como irei ser professora se não estudar, aprender a dar aulas?

— A técnica é necessário para ser professora isto é bem claro para mim. O resto é que se torna um problema. Um defeito.

— Que resto, criatura?

— A lembrança dos dias que se passaram. O que te machucou, o que te deu alegria, o brinquedo ganhado o outro quebrado. Os exemplos bons, os ruins.

— Não vejo defeito nisso.

— Quando algo novo acontece, você busca na sua caixa de memórias a resposta para lidar com a novidade. Preenche o novo com velho e vive uma vida todo assim. No final estará sempre no passado até ser tarde demais.

— Não é bom buscar no já vivido a solução de um problema? Vou além, projetar dias melhores com base no conhecimento adquirido?

— Não, Elisa. Toda chuva é nova e a aproveito quando ocorre. Cada pingo cai de forma diferente no solo, tem peso e tamanho diverso. Não os comparo com pingos antigos nem tempestade passada para me preparar para chuvas novas. Como já te disse eu só sei árvore e é isso que as árvores fazem.


6 de agosto de 2021

Fins e começos



— Entendo, mas me nego. Prefiro matutar sobre coisas que simplesmente não compreendemos. Tens um nome? Poderia me dizer? 

— Pois não, chamo-me Gaspar. 

— Pois bem, senhor Gaspar, pense comigo: quando exatamente começa a vida?

— Que tipo de pergunta é essa? Que importa saber quando? 

— O senhor há de me dar razão de que o feto vive na barriga de sua mãe.

— Que diferença isso faz, menino?

— Saber quando algo começa ou termina é fundamental. Nosso cérebro funciona assim, não percebe? Fim do primeiro ato, início do segundo. Acabou o capítulo treze, iniciou-se o quatorze. O problema é que acho tudo isso bobagem.

— Se acha isso por que me aborrece com o assunto? 

— Penso que uma coisa vai aos poucos se transformando em outra; vida paulatinamente vai se tornando morte. O senhor está morrendo, nota? Eu estou e isso me entristece. Embora tal qual o início, não se sabe, ainda, precisar o fim da vida, todos sabemos que ele chegará. Só podemos afirmar que chegou depois que passou. 

— O que fazer, então? 

— Eis aí um grande dilema. Conhece a palavra dilema, não? Aquele termo que significa “sem saída”; um problema que qualquer solução possível é ruim. Para estes casos, penso que não há remédio.


Trecho de "Respeitável Benjamim"