27 de abril de 2018

Uma menina e uma cadeira - segundo ato

O primeiro ato pode ser lido aqui.



Segundo Ato

Uma jaula desce do céu e se ajusta à menina e sua cadeira. O policial sai pela direita. Música alegre começa a tocar, entra um casal dançando tango. Ela uma moça pequena, de pernas grossas, salto alto, vestido vermelho, luvas negras até os cotovelos e um coque bem feito nos cabelos negros. Ele um jovem alto, magro, de calças negras, sapatos negros bem lustrados, camisa branca, arregaçada nas mangas, o rosto limpo, os cabelos penteados para trás, fixados por gel.
— Bravo! — Atriz bate palmas.
O casal agradece com uma reverência.
— Eu bem que gostaria de dançar assim. Na maioria das vezes sinto-me livre, capaz de tudo, mas algumas vezes os meus olhos me traem e fico triste. Bem, acho que são as algemas e esta jaula enorme que caiu sobre mim.
— Que fez para ser presa? — pergunta o dançarino.
— Gosto de pensar sobre prisão. Acho que ela só ocorre se o detido permitir. Veja Anne Frank, por exemplo, ela viveu parte de sua vida em um porão de uma fábrica, mas não se viu presa. Pelo contrário, estar ali era sua liberdade. Sabe o motivo? Ela tinha imaginação, esperança e palavras. Eu tento imitá-la, embora nossas situações sejam completamente diferentes.
— Você é doida? — é a vez da dançarina perguntar.
— Quem não é? Estes tempos deixam todo mundo maluco. Eu me preocupo. Fico imaginando como são as pessoas de verdade; como são vocês, dançarinos, de verdade. Como se chamam?
A dançarina se chama Dolores e o dançarino se chama Bernardo.
— Pois bem, como Dolores realmente é? Bernardo, perdão por dizer, mas não gosto de nomes com a letra b — Atriz repete a história do que fez ao próprio nome.
— Deve estar presa por ser maluca. Vamos embora — diz Bernardo.
— Pois vão. Se a verdade lhes incomoda tanto e melhor partir.
— Verdade? Não sabe nada sobre nós!
— Pela maneira que se olham, sei que não são apaixonados um pelo outro. Outra coisa, a forma como dançaram, embora muito bonita, não foi verdadeira. Passos ensaiados, coreografia decorada, sorrisos falsos. Assim são as pessoas desse mundo. Elas decoram um modo de viver e repetem os passos a vida toda. Eu não gosto disso.
— Ora, não podemos sair por aí falando o que pensamos, agindo com imprudência. Se a vida for como o tango, isso é bom. Uma dança bonita, intensa. Quer saber, já nos enchemos de sua tagarelice! Passar bem, ou mal, tanto faz. Até logo.
— Até — Atriz acena da jaula.
Saem os dançarinos, entra o homem do primeiro ato.
— Precisamos nomear este sujeito. Se já aprece duas vezes, de certo é importante para a trama. Que acha de Hugo?
O homem de terno negro de riscas cinzas se chama Hugo. Ele se aproxima da jaula. Desesperado chacoalha a grade.
— Como a senhorita foi parar aí? Deus do céu, sua mãe vai me matar!
— Não se preocupe, Hugo, está tudo bem. De certa forma estamos todos presos. Amarrados às leis que nos rodeiam ou até mesmo a nossa genética. Por falar em genética, apesar de cada ser humano ser único, é uma mistura de dois outros anteriores que passaram suas características ao filho. Deste modo, é muito difícil para uma pessoa fazer algo que seus antepassados jamais fizeram. É óbvio que ela poderá fazer, mas não o fará bem feito ou nem terá vontade, vai saber.
— Pare, senhorita Atriz. Seus devaneios complicam ainda mais as coisas. Precisamos pensar em um modo de tirá-la daí.
— Pois eu mesma vou pensar em algo. Se não pensar, alguma coisa há de acontecer e me libertarei. Mesmo que nem uma nem outra coisa ocorram, tudo bem. Eu tenho esperança e isso me basta.   
— Se tivesse me acompanhado no início, tudo isso teria sido evitado.
— Não diga tolices! Tens um espelho? Pergunto por educação porque sei que tens.
— Aqui está — Hugo entrega um pequeno espelho circular à Atriz.
Ela encara o próprio rosto refletido. Os cabelos cacheados e longos, armados, os olhos negros, enfeitados por maquiagem exagerada, o nariz fino, os lábios grossos e rubros.
— Então esta sou eu. Bem, ao menos esta sou eu como me vejo no espelho. Como você me vê, Hugo?       
— Com os olhos, senhorita.
— Que asno — ri a menina. — Não digo com o quê, mas a maneira. O que observa?  
O jovem negro abaixa a cabeça. Responde:
— Não tenho os seus olhos...
— Tudo bem, uma pessoa não é igual a outra, de modo que não pode enxergar o mundo como eu. Sabe que esta história é minha tentativa de mostrar o meu mundo; as grandes questões que permeiam meus pensamentos.
— Sim, senhorita. Peço-lhe licença para encontrar alguém que possa libertá-la.
         — Vá


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