29 de abril de 2010

Crônicas de Ester: Miranda antes


Os dias de verão passavam mais depressa que em outras estações. Talvez fosse pelo fato de as tardes se alongarem devido ao horário de verão. Os dias pareciam feitos para as férias que já tinham acabado. Mas naquela época, as pessoas estavam mais empolgadas com a proximidade do carnaval do que com as férias acabadas. É que em nosso país o ano só começa de verdade depois do carnaval.
As aulas tinham retornado desde o inicio do mês, mas as classes estavam vazias ainda. As professoras mantinham o brilho das férias quando lecionavam e os alunos não tinham se dado conta de que o ano havia começado. Entretanto, para a adolescente de cabelos castanhos e amarrados num penteado “rabo de cavalo”, como chamavam, tudo parecia sem brilho fazia muitos anos. Seu corpo desengonçado de massa mais elevada que as outras meninas da sua idade, estava jogado em um banco de cimento do pátio daquela escola. O jeans todo rabiscado e rasgado cobria-lhe as pernas levemente envergadas. Eram grossas demais. A camiseta do uniforme escolar, para ela, tinha que ser do tamanho G, apesar de ter apenas 15 anos e os olhos castanhos precisavam ser emoldurados por óculos para que ela pudesse ver corretamente. 2 gruas de miopia no olho direito e 2,5 no esquerdo.
Miranda Albuquerque, como chamava a adolescente, era pessoa de poucas palavras e de atos rebeldes. Dizia só o necessário, mas já tinha experimentado o álcool e cigarro. Cometia pequenos furtos em mercearias e lojas de conveniência apenas por diversão, já que nunca tinha lhe faltado nada.
Queria chamar atenção, diziam seus pais ao psicólogo quando lhes eram perguntado sobre a menina. Ela fazia terapia há dois anos mas de nada tinha adiantado. Os prazeres que Miranda sentia eram o de comer e o de imaginar, ambos lhe causavam alívio da realidade.
— Mi? — uma voz fina chamou pela adolescente — Mi?
— Hum? Ah! É você Carla...
— Tava distraída é?
Miranda não respondeu.
— Consegui falar com o Felipe! – Continuou Carla.
— E quem mandou você falar com ele?
— Ora, ninguém! Mas eu sei que você gosta dele! Disse que você queria ficar com ele, hoje depois da aula!
Miranda arregalou os olhos:
— Você está brincando não é?
Carla gesticulou um “não” com a cabeça e depois continuou:
— Ele disse que iria te esperar atrás do ginásio! Você vai né?
Miranda suspirou. Desde que entrara naquela escola, há 4 anos, ela conservava um admiração especial por Felipe. O garoto foi chamando a atenção da menina apenas pelo modo com que se comportava; pelo modo com que falava e se vestia. Miranda idealizou na figura do garoto o seu príncipe encantado. Durante a noite, enquanto dormia, ela forçava seus sonhos a serem com Felipe. Sempre estavam juntos em sonhos.
Mas na vida real era bem diferente. O menino mal a cumprimentava quando a via. Como era popular, sempre estava misturado ao pessoal metido da escola. Miranda os desprezava, mas Felipe era diferente... ela via nele algo que não se podia ver em outros meninos.
— Eu vou — respondeu para a amiga – Ele não vai aparecer por lá e daí aproveito para fumar um cigarro.
Carla, a menina de olhos vívidos e cheia de vida sorriu. Suas tranças ruivas chacoalharam eufóricas demonstrando a excitação que tomou conta de toda a menina. Apesar de muitas sardas da franja obsoleta que conservava, Carla era uma excelente pessoa.

Findado o segundo e último período de aulas, Miranda arrumou seu material na mochila e se dirigiu lentamente até a saída da sala. Teve tempo, porém de ouvir Carla dizer-lhe “boa sorte”. Ela não se preocupou. Tinha certeza que Felipe não estaria no lugar combinado, pois sabia que ele tinha dito que iria apenas para afastar Carla. A sua amiga era muito irritante, sabia.
Desceu a escadaria do prédio da escola e caminhou misturada aos outros estudantes até a saída. Dirigiu-se até o ginásio que ficava ao norte, poucos metros de distância do prédio de aulas e lá chegando, se surpreendeu:
— Miranda, não é? Que nome estranho...
A voz de Felipe era perfeita; suave e transpassava segurança. Era um garoto de pele clara, de cabelos compridos e dourados. Seus olhos verdes fitavam Miranda que, por sua vez, não sabia o que dizer. Ele, porém continuou:
— A Carla me disse que você queria ficar comigo — e se aproximou.
Miranda continuava silente, assustada. Felipe pegou a mão de Miranda e sorriu. Mesmo sem querer a adolescente retribuiu o sorriso:
— Galera! Podem sair! Venham ver! A garota achou mesmo que eu ia ficar com ela!
Então para o pasmo total de Miranda, de trás das pilastras que apoiavam o teto do ginásio esportivo, outros garotos e garotas saíram rindo. Seu cérebro demorou um pouco para entender o que estava acontecendo:
— Ela pegou a minha mão e tudo, olhem! — Felipe mostrou que estava de mãos dadas com Miranda — Achou mesmo que tinha chance!
O pessoal metido da escola, como Miranda os chamava, não paravam de rir e a menina sentiu seu coração disparar. Engoliu a seco, pois faltava-lhe saliva. Soltou a mão do menino que estava com ela:
— Se enxerga, ô rolha de poço! — Felipe gargalhou – Eu jamais ia ficar com uma garota tão gorda igual a você!
Aquelas palavras destruíram todos os sonhos que Miranda tinha feito em suas noites; aquelas palavras foram como uma lança que lhe atravessou o coração. Mas Miranda era uma mulher calejada pelas ofensas e soube esconder sua ferida, fazendo igual às onças quando se sentem ameaçadas: atacou!
— Seu idiota! — Desferiu contra Felipe um soco com toda a sua força.
O silêncio ganhou todo o ambiente por um segundo. A adolescente olhou para o seu príncipe falso que limpava o sangue que lhe escorria pelo canto dos lábios. Viu em câmera lenta ele se recompondo e gargalhando.
Miranda saiu correndo, sentindo as lágrimas brotando em seus olhos. Não podia deixar que a vissem chorar.

Um comentário:

  1. Paul, que história super interessante! Legal descobrir como a Miranda era antes. Pena que ela tenha passado por essa decepção, com certeza apenas uma de tantas outras, mas ainda assim tão dolorida!

    Miranda é uma das minhas personagens preferidas. =D

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