30 de abril de 2015

Tomo V - Mamie nunca mais



O primeiro dia na nova casa, depois de ser vendida pelo pai foi o mais difícil. Mae não tinha noção do que acabara de acontecer. A porta sendo aberta chamou sua atenção. Ela levantou os seus olhos marejados.
— Não se preocupe, menina. Logo você se acostumará. Faça o seu trabalho e terá tudo do patrão. Não faça e além de ser obrigada, não terá nada — foram as palavras do velho negro que adentrou no quarto com uma bandeja prateada nas mãos.
Ele colocou o que portava em cima da cama.
— Sua janta.
Mae o olhou com fúria, vergonha, não sabia dizer. Estava encolhida e coberta com o lençol. Era um homem encurvado, de vestes simples: camiseta, calça de saco e chinelos. Cabelos brancos, armados e barba mal feita. Rugas fundas cercavam os seus olhos grandes e embaçados que se esforçavam para identificá-la. Ele disse:
— Sou Jake. Se precisar de algo é só me chamar.
Ela soube depois que o negro era um dos empregados pessoais de Madison, entretanto não conseguiu seguir o conselho dele imediatamente. Depois daquela primeira noite, não aceitou que o ato se repetisse. Ruben estava cansado e se convenceu de que era melhor esperar mais um dia, como havia lhe sugerido Jake. Mas Mae teria sua punição: ficaria sem ser alimentada durante todo o dia seguinte.
Mesmo assim na terceira noite, ela se negou a deitar-se com o amo. Ele a forçou ao trabalho e foi terrível. No dia seguinte, além da tristeza teve de conviver novamente com a fome, posto que a proibição de comer perdurou.
— O que eu te disse? O Senhor Madison é um bom homem, mas não aceitará que uma escrava o rejeite. Isso é pior para você — foi o que o velho Jake disse a Mae, quando deu-lhe uma maçã às escondidas.
Naquela noite Ruben chegou tarde e nervoso. Algo dera errado na Tecelagem. Mae ficou com medo e revolveu seguir as orientações do empregado de casa, não resistindo.
— Bom, menina — sorriu-lhe Madison — É melhor para todos que as coisas funcionem assim.
O xerife era um homem repugnante. Extremamente gordo, de olhos pequenos e nariz torto. Acendeu um cigarro e deixou os aposentos de Mae.
— Jake, sirva o jantar para a garota — o bom humor havia reaparecido.
  Após firmar acordo com o amo, Mae passou os dias seguintes tranquila na mansão, comendo iguarias que jamais teria conhecido se vivesse com os pais. Podia usufruir de todos os empregados de casa.
Num domingo por volta do meio-dia, o amo chegou portando várias sacolas. Mandou chamá-la. Mostrou-lhe as roupas e sapatos que havia comprado.
— A partir de hoje você só se vestirá com essas roupas. Não quero que a minha escrava seja vista por aí com estes trapos que usas.
Com as roupas novas (as mais caras produzidas na empresa) vieram os passeios. Mae frequentou várias confraternizações ao lado de Ruben Madison. Era exibida como um objeto caro. Para os padrões da época era como possuir um veículo automotor e funcional. Haviam outros que também possuíam suas mulheres, geralmente xerifes.
Em uma festa, enquanto tomava um ar na varanda da mansão de Donovan Flink conheceu Cindy, outra escrava. Ela fumava um cigarro.
— Então, como é a sua cidade? — ela perguntou depois de uma baforada.
Era acima do peso, usava um vestido vermelho com exagerado decote. O cabelo curto e volumoso.
— Não sei, não saio de casa.
— Você é nova. Quando chegar na minha idade vai poder conhecer o povoado. Aqui funciona a Usina, a empresa que fornece energia para boa parte do Novo Oeste. O pessoal que trabalha para o meu amo mora nas redondezas. A Usina mais todos os empregados são chamados de Liandra. Donovan Flink é o dono de tudo e todos por aqui.
Mae associou que o mesmo se dava em Runner. A diferença era o ramo e nome da empresa. Na sua cidade funcionava a Tecelagem.
Naquela madrugada voltou silente na carruagem do amo para casa. Divagava sobre o mundo diferente que passou a conhecer desde que saíra da casa dos pais. Compreendia o que eles fizeram e passou a odiá-los. No dia seguinte, numa conversa com o empregado e amigo, confessou sua tristeza.
— Não acredito ainda que o meu pai foi capaz de me vender. Isso me deixa muito triste.
— Tristeza não é boa, Mae. Sentimento, qualquer um, não presta. Quer ter uma vida melhor? Procure não sentir.
As palavras de Jake não fizeram muito sentido no começo. Contudo, Mae não pôde deixar de juntar o novo conselho ao anterior. Não era isso que fazia quando cumpria a sua função de escrava?  E o próprio Jake, que sentimentos possuía? Parecia um robô que apenas se limitava a cumprir as ordens que lhe eram dadas. Mais algum tempo e algumas conversas com o velho amigo, passou a usar o “não sentir” no seu cotidiano, mostrando-se um modo de defesa eficiente.
Pouco falava com o seu amo, o senhor Madison. A submissão diária foi reforçando e lhe concebendo prática na utilização da tática de se colocar alheia às emoções. Tal qual um objeto de verdade, Mae portava com a maior discrição possível e só ganhava vida quando fosse ordenada a realizar alguma tarefa.

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