26 de junho de 2015

Tomo IX - Onde Estávamos?


Não sentir, lembra-se? O pensamento veio-lhe à mente. Tremia, tinha vontade de vomitar. Não sentir, não sentir. Deus, como era difícil. Mae se levantou, os joelhos trêmulos. Passou a mão nos olhos. O revolver pesado foi com ela. 
Um pouco de caminhada e avistou três dos quatro cavaleiros que dominaram Runner. Cercando-os, várias pessoas. Ela apontou o revólver para o grupo que falava aos sobreviventes.
Bruce Parker fez gesto aos companheiros para que mantivessem a calma. Ele se aproximou com as mãos sugerindo rendição. Ela continuou apontando a arma para o pistoleiro. Quando estavam muito próximos, Parker tomou-lhe o revólver e deu-lhe um safanão.
— Jamais aponte uma arma para alguém se não estiver disposta a puxar o gatilho. 
Mae ficou no chão. A mão no rosto onde fora atingida e os olhos distantes.
Bruce virou-se para os comparsas e fez um sinal para que trouxessem algumas pessoas. Continuou dizendo a Mae:
— Entre essas pessoas há três que são filhos do seu amo — ele fez novo gesto para que Damian se aproximasse com uma criança.
Os olhos do pequeno e os de Mae se cruzaram. Ele não estava entendendo nada. Talvez ela também. Tristemente familiar eram aqueles olhos, mas havia também os traços de Madison. Mae abaixou o olhar. Bruce disse:
— O menino se chama Raul. Achamos que ele é seu filho.
Todos ficaram quietos. A escrava de Ruben se voltou para a criança ainda do chão e disse: 
— Não sei do que está falando.
Alguns presentes expressaram admiração.
Wayne, Damian e Xamã disfarçaram as deles. 
— Ok — o caubói acendeu um cigarro. — Acabou. Está livre — e se afastou. 
Ele voltou para perto dos outros comparsas. Mae ouviu o que diziam. Saqueariam a vila nos próximos dias. O comando da operação ficaria com Xamã, o mais velho dos três pistoleiros ali presente. Era um homem pequeno, magro, negro. O único que não usava chapéu dos bandidos. O seu coldre parecia grande demais assim como o sobretudo negro.
Levou alguns dias para que Mae se habituasse às mudanças. Ficou em casa de Madison, mas trancada nos seus aposentos. Descia para comer quando não havia ninguém. O tal Xamã havia se instalado na mansão, mas não se falavam.
Soube que Bruce e Damian partiram de Runner levando alguns galões de avermelhamento e parte do dinheiro de Madison. Seu filho rejeitado, Raul Madison, tinha seguido com os bandidos para ser deixado com um meio-irmão em Liandra. Assim como Mae, as pessoas da cidade estavam perdidas. 
Certa vez, quando julgou estar sozinha, na sala da mansão deparou-se com o bandido. Ele fumava despreocupado e disse-lhe:
— Você poderá ficar com a casa. O meu tempo aqui está acabando.
Mae concordou, sem jeito. A visão dos braços do pistoleiro fez com que indagasse: 
— O que são estas marcas no seu corpo? 
O velho sorriu.
— Vi negar o seu próprio filho, dias atrás. 
— Eu não tenho filho.
Xamã continuava rindo.
— Se você diz... Quer mesmo saber o que são as minhas marcas? Nunca ouviu o ditado: a ignorância é uma benção? Ou que que só damos valor nas coisas depois que as perdemos? 
— O que tenho mais para perder?
— Eu também me perguntava isso quando era jovem. Depois percebi que havia muito mais coisas ainda por perder. Hoje tento recuperá-las e acho que o mesmo acontecerá com você. 
Houve o silêncio. Xamã levantou-se da poltrona da sala tantas vezes ocupadas por Ruben Madison e se aproximou da janela. Jogou a bituca por ela.  
— Está tudo aí, menina. Estou conectado a tudo. Somos feitos da mesma coisa e quando puxo um gatilho sei bem aonde acertarei. Não há novidade — ele trancou a janela — e isso é muito chato. 
— Você é louco? Quem são vocês que invadiram a minha cidade? Por que o fizeram? 
— É um perigo alguém cheio de dúvidas, sabia? Para os xerifes o importante é ter certeza. 
Mae não podia compreender o que dizia aquele homem estranho. Ele percebeu e disse:
— Esqueça tudo isso que te falei. Voltemos à sua pergunta inicial. Depois que eu te mostrar o que são as marcas tudo ficará mais fácil de compreender. Mas não diga que eu não te avisei...
Xamã deixou o local.

Por que Xamã? O sujeito era negro, não tinha qualquer traço indígena ou místico. Quem o visse, facilmente o classificaria como um mirrado velho. Indo muito, um agricultor já vencido pelo sol, mas que ainda persistia na labuta por não ter outra fonte de renda. Aos poucos Mae foi compreendendo os motivos do homem possuir o apelido. 
— Isso vai funcionar por um tempo, até os policias ou alguém mais forte invadir a cidade — ele explicou enquanto andava por Runner ao lado da ex-escrava. — A fábrica de tecidos está funcionando normalmente. Fiz uma sugestão ao Vladimir, o filho mais velho do seu amo.
— Que tipo de sugestão?
— Ele vai dividir os lucros da fábrica entre todos os moradores. Assim não terá problemas em continuar explorando o trabalho do pai, já que não haverá objeção. 
— Salários?
— Sim. Aqueles que trabalham na tecelagem receberão uma parte do dinheiro a título de salário. É como uma indenização pelo tempo de vida que as pessoas gastam em favor de uma única pessoa ou grupo. 
— Compreendo.
— Já foi organizada uma eleição para o novo xerife. Assim que ele for eleito, partirei. 
— O que é ser eleito?
— Escolhido pelos moradores da cidade para tomar conta de tudo. Pela maioria. 
— Você é estranho. Tem ideias que nunca passaram pela minha cabeça. 
— Não são minhas, Mae. As ideias estão no ar, eu apenas tenho a capacidade de captá-las. Tudo que já se pensou ou viveu continua por aí, gritando para que alguém lhe agarre.

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