17 de julho de 2015

Tomo XI- Agora eu sei


— Atire em mim — disse Xamã. 
A estrada estava deserta e ambos de frente um para o outro. As tendas posicionadas lateralmente observavam tudo. 
Substituíram o sangue de Mae Dickson por um sintético contendo robôs do tamanho de células, capazes de interagir com similares que estavam espalhados no ar e nas coisas. Os efeitos do procedimento biotecnológico foram inúmeros: era, agora, um ser pálido e tracejado por linhas verdes brilhantes. Elas se faziam até mesmo nas bochechas.
— Não quero fazer isso — ela respondeu ao mentor. 
— Mas eu quero — ele sacou o revólver com habilidade e disparou.
Sem que Mae controlasse os próprios movimentos, sua mão sacou do coldre o seu revolver e devolveu o ataque. Os projéteis colidiram no ar e ricochetearam. 
— Isso não é possível! — ela disse, atônita. 
Ofegante, observou o braço que acabara de desobedecê-la. As suas veias agora tinham o tom vermelho brilhante. 
— Não se distraia menina — Xamã disparou pela segunda vez e atingiu Mae na barriga.
Ela levou a mão ao ferimento.
— Oh, merda — sangue umedecia os seus dedos.  
Antes que pudesse pedir socorro, notou que o ferimento estava deixando de sangrar. Dor também já diminuía. Que haviam feito com ela?
— Isso é incrível! — Mae sorriu apesar da confusão. 
— Você não está fazendo isso direito, Mae Dickson. 
Xamã atirou com os dois revólveres por várias vezes, atingindo Mae nos ombros e joelhos. A menina ganhou a areia com violência. Ela tossiu. Era sangue em sua garganta? O filho da puta queria mesmo matá-la? 
Assim que este pensamento dominou sua cabeça um estranho zunido se fez audível. Não pôde pensar em mais nada. Quando recuperou a consciência Xamã estava no chão, alvejado no peito. 
— Ai, droga! — ela correu em direção do mentor — Eu não queria fazer isso. 
Ele fazia uma careta e se contorcia sobre a areia. 
— O que eu faço agora? 
— Que tal ficar quieta? — o pistoleiro respondeu entredentes.
Mae viu o ferimento do professor se fechando diante dos olhos.
Xamã ensinou que em modo de combate, quanto menos pensava, mais próxima da reação perfeita se encontrava. Aquelas palavras ditas ali sobre a areia não fizeram muito sentido no começo. Depois, no entanto a bandida começou a perceber que as reações automáticas eram as mais perfeitas. Os testes dos dias seguintes lhe mostraram isso. 
— Medite, menina. 
Ele disse quando se encontrava em sua tenda, sem camisa e em posição de lótus. Mae achou estranho, mas se sentou ao lado do professor e imitou sua posição. 
— A meditação ajuda a desligar as interferências que causamos ao avermelhamento. Seu corpo sabe o que fazer. 
A garota tinha dúvida. Era mesmo possível que sabia o que fazer automaticamente? 
— Sim, é possível — Xamã disse. 
— Você lê pensamentos? Isso está me assustando, Xamã!
— Já te expliquei que não sou eu, mas o que os obsoletos espalharam no mundo. 
Houve o silêncio. Mae fechou os olhos. Não demorou a abri-los.
— Eu não vou conseguir fazer isso antes que me explique por que fez isso comigo. 
— Fiz o que fiz por achar que você precisava sobreviver, menina.
Ela não conseguiu mesmo aquietar os seus pensamentos. As lições tiveram fim por aquele dia.
 Mais tarde em sua tenda o sono não foi tranquilo. As vozes não silenciavam, não havia paz num irônico paradoxo. Esvaziar a mente? Como se aquela merda em seu corpo não parava de obter informações de tudo. Como era possível dormir (e viver) com tanta coisa na cabeça? Pulou da precária cama quando percebeu que não tinha mais paciência para dormir em prestação. 
A escuridão começava a amenizar, dando lugar ao frio que antecedia o alvorecer sobre a terra árida, quando Mae deixou sua nova moradia. Os cavalos amarrados a estacas relinchavam boa madrugada. Ela abraçou os ombros, sentia frio. 
Sentir.
Avistou um homem magro escovando um equino. Aproximou-se. 
— Bom dia.
— Bom dia, senhora — ele parou o que vinha fazendo.
— Desculpe, não queria assustá-lo.
— Está tudo bem. Como se sente? Pergunto porque escuto falar sobre o avermelhamento. 
— O que falam? 
— Que é quase como ser Deus. Olhe as tendas. Todo mundo aqui espera pelo dia de ganhar essa chance. De poder fazer alguma coisa, sabe? O líquido é escasso e os próprios pistoleiros acabam consumindo as reservas que possuem para repor o que é perdido.     
Foi ali que Mae começou a entendeu o quanto era importante o que Xamã havia feito com ela; o fato de seu mestre ter lhe dado condições de revidar às injustiças daquele tempo. Ela empunharia o revólver contra qualquer agressor, fosse para salvar a si mesma ou os outros que dependessem dela. 
Após estabelecida a gratidão silenciosa, Mae Dickson passou a treinar com afinco. Meditava, aprendia técnicas de potencializar o avermelhamento e realizava novos experimentos. As vozes se calavam quando tinha determinação. Nunca esqueceu aquele cuidador de cavalos e a esperança daquele povo.   

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