17 de agosto de 2016

Um capítulo do livro Rainha


Às vezes nos sentimos deslocados, fora de sintonia com o mundo e suas pessoas. Raira se sentia assim. Era como se tudo aquilo fosse emprestado; não seu de verdade e até mesmo ali, em seu ônibus-trailer não se sentia segura, em casa. 
Com o estouro de seu primeiro álbum, tinha uma agenda de shows extensa e como não gostava de voar, cruzava o país em cima de rodas. Estava voltando para casa. Era estranho que com o repentino sucesso, tinha se distanciado de sua família, mesmo cercada por Cavalos e Peões. 
Ela queria passar uma tarde com seu irmão que há tanto não via. Eram tão unidos e agora estavam tão separados que nem se falavam. Temia que não houvesse chance de despedir-se dele. Rei tinha obrigações. 
Fitou pela janela as luzes de alguma cidade pequena pela qual passava seu ônibus e imaginou o que estariam fazendo aquelas pessoas. O que sabiam de verdade? Certamente pouco, diferente dela. Tinha vontade de ser como eles, por isso que precisava fazer o que planejara. 
O ônibus virou com violência ao som da freada brusca e Raira bateu com a cabeça no vidro. Levantou o rosto para ver o motorista quando uma luz forte invadiu o interior do ônibus. Os seus olhos cinza se abriram de desespero e ao som do impacto, tudo ficou escuro.
Quando a consciência voltou, tudo continuava escuro e o barulho de algo em curto era o único som. Raira afastou de si pedaços do ônibus e apoiou-se nos braços para forçar o corpo a se levantar. Neste momento, sentiu uma dor forte e constatou estar com o braço direito quebrado ou deslocado. Apoiou-se no esquerdo e se levantou. O ônibus estava tombado. Caminhou pelas janelas e saiu do veículo pelo para-brisa quebrado. 
Procurou seu Salvo, e por sorte ele estava no bolso da calça. Chamou por ajuda:
— Fagner! Solicitando ajuda — disse ao telefone especial.
— Localização já visualizada, Rainha. Meu satélite me forneceu imagens de acidente automobilístico. 
— Confirmado. Meu ônibus bateu. Meus homens estão lá dentro. 
— Confirmado. Solicitando Cavalos próximos para remoção. Isso demandará tempo, já que está em um local não abrangido pelo Xadrez. Não tente socorrê-los. 
— Está bem. 
— Tenho imagens suas que me mostram escoriações. Há dano mais grave? 
— Meu braço direito está quebrado ou fora do lugar, não sei direito. 
— Positivo. Encaminhado médico. 
Raira desligou o aparelho quando percebeu uma explosão que transformou tudo em chamas. Ela se sentou no gramado e não pôde sentir pena de seus companheiros. As chamas consumiam aquela condução colossal e a vida daquelas pessoas. Salvara-se por pouco, por capricho. Destino? O plano quase se arruinara por forças alheias à sua vontade. Deus? Ela abaixou a cabeça, sentia-se próxima do que almejava. Surpreender-se. 
Na superfície espelhada do Salvo que descansava no gramado, agora iluminado pelas chamas, percebeu que havia perdido uma das lentes de contato que lhe conferiam o olhar acinzentado. Com a mão esquerda retirou a outra e pôde observar a chegada da polícia e dos bombeiros. Continuou sentada quando um homem baixo aproximou-se:
— Está bem? Lamento pelos outros ocupantes do ônibus.
Raira viu nos olhos dele a preocupação. Ficou reparando nele como se quisesse decorar aquele semblante, cada detalhe. Era fascinante para ela ver pessoas sendo apenas pessoas. Ele a olhou de cima em baixo, constatou os ferimentos e disse:
— Está ferida! O que aconteceu?
— Não sei o que houve. 
— Vou chamar uma ambulância. 
— Não! — Raira se levantou. 
— Como não? Está ferida, precisa de cuidados.
— Preciso ficar aqui com você, seja lá quem for. 
O homem baixo ficou estático por algum tempo. Depois respondeu:
— Está bem. Chamo-me Bruno, sou o delegado desta pequena cidade.


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