24 de novembro de 2017

Uma menina e uma cadeira



A luz focaliza uma cadeira. Há uma menina sentada nela. Ela abre os braços num movimento exagerado, espreguiça-se. Observa as mãos cobertas por luvas brancas, os braços alvos demais preenchidos por tatuagens. Nas pernas meia-calça rosa, desfiada e rasgada, sapatos brancos. Coloca a mão na barriga, apalpa o tecido bege do vestido de renda.   
Entra um homem.
— Aí está você — ele diz, zangado.
— E aí está você. Cá estamos nós, não é incrível?
— Não comece!
O homem se aproxima da cadeira. Veste um terno negro de riscas cinzas, empoeirado, camisa amarelada, encardida, cuja gola está desfiada. As riscas da calça estão desgastadas, rompidas em algumas partes. Ele abre os braços e confere o próprio figurino.
— Como estou? — diz à dama.
— Você parece bem. O que quer?
O sujeito retira o chapéu abaixa a cabeça, revelando os cabelos crespos, desgrenhados.
— A senhora sua mãe me mandou aqui. Ela quer que volte para casa, está preocupada...
— Diga a ela que fico. Sempre quis dizer isso. Aliás, não diga nada, já que não tenho mãe. Não percebe, não há nada além de nós e esta cadeira.
— A senhorita está, como posso dizer, doente.
— Estou muito bem, nunca estive melhor. Já deu o seu recado, agora pode ir. Espero outros personagens que serão fantásticos, posso sentir. Será uma história incrível, não vê? Não ouve? Não sente o cheiro?
O homem suspira. Coloca o chapéu de volta na cabeça. Sai de cena.
A garota diz:
— Vou confessar uma coisa a vocês: não gosto do meu nome. Eu queria ser chamada por um que começassem com A, como Ana, Amélia, Adriana, Aline ou Aurélia. Não com B de Bianca, Bárbara, Bruna ou Bernadete. Então, tire o B do meu nome e agora me chamo Atriz, o que acham? Sei que esta palavra já existe e é usada para definir uma profissão, mas por que não pode funcionar como nome? Claro que pode, há tantos nomes diferentes por aí... E outra, nome é nome assim que os pais decidem qual será, não havendo critérios pré-definidos para eles.
 “Como podem ver, desculpe é modo de falar, como podem ler, esta história é sobre mim e minha cadeira. Não pense que preciso de mais. Pela esquerda entra uma pessoa, conversamos. Pela direita ela se vai. Não é assim com a vida? Nascemos numa ponta, vivemos, morremos na outra. Escute os passos, lá vem alguém, preste atenção.
Atriz finge estar distraída. Aproxima-se um homem fardado.
— Sentido! — diz a menina.
O homem bate continência.
— Descansar — ela finaliza.
— Senhorita Atriz, queira fazer o obséquio de não resistir.
— Obséquio é gozado.
— Que há de errado com a palavra?
— Nada, só é gozada. Prefiro que use favor.
— Não importa a palavra. Entendeu a ordem? Pois bem, saiba que precisa parar de bobagens. Esta história de uma menina e sua cadeira não tem como perdurar. Que graça há nisso?
— Isto dependerá de nós. Você falou mal da minha cadeira?
— Não tem nada de errado com sua cadeira. Pelo contrário ela até parece uma boa cadeira. O que estou tentando dizer é que o que está fazendo conosco é errado. Eu vim aqui para prendê-la, mas a senhorita desvia o assunto. Faz-me de tolo de um modo que eu não consigo compreender totalmente.
— Há coisas na vida que simplesmente não compreendemos, policial. Tens um nome? Poderia me dizer?
O policial se chama Gaspar.
— Chamo-me Gaspar.
— Pois bem, senhor Gaspar, pense comigo: quando exatamente começa a vida?
— Quando se nasce?
— Nada disso. O feto é um ser vivo, não concorda? Embora não saibamos quando exatamente ele se torna vivente, exames revelam agrupamento de células, movimento, atividade cerebral, o coração batendo, tudo isso atesta a vida. O que acho curioso e o senhor há de me dar razão, é o fato de mesmo com toda a tecnologia que temos hoje, ainda não conseguimos definir o momento exato em que há vida.
— Que diferença isso faz, menina?
— Ora, toda. Saber quando algo começa ou termina é fundamental. Nosso cérebro funciona assim, não percebe? Fim do primeiro ato, início do segundo. Acabou o capítulo treze, iniciou-se o quatorze. Precisamos de termos e inícios para nos organizar. O curioso, penso, é que a Natureza não funciona assim. Há processos, percebe? Uma coisa vai aos poucos se transformando em outra; vida paulatinamente vai se tornando morte. O senhor está morrendo, nota? Eu estou e isso me entristece. Embora tal qual o início, não se sabe, ainda, precisar o fim da vida, todos sabemos que ele há de chegar.
— Está dando nó em meu cérebro.
— Estou só começando.
— Nem pensar. Chega de falar, senhorita Atriz — o policial saca suas algemas. — Já perdi muito tempo, estenda os braços por obséquio, oh, desculpe: por favor.
Atriz estende os braços e o policial a algema.

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