5 de fevereiro de 2018

O primeiro capítulo de Rainha (Prólogo)




Prólogo

Sentada, de frente consigo mesma refletida no espelho, Raira Brenemberg pensava se realmente daria certo. Tinha dúvidas, mais nada. O camarim era bem iluminado e bem vedado ao som. Quase não se ouvia o alvoroço, o seu show. A roupa branca descansava no cabide de madeira preso em um gancho ao lado da penteadeira, faltava pouco para se apresentar à multidão. Pessoas, gente que sentiam.
O que valorizavam? O que realmente tinha importância? Perguntas desta ordem estavam em sua mente há algum tempo. Tinham se tornado ideia fixa, obsessão, esperança. Tocou o espelho com a palma da mão direita. Fitava-se, não via nada. O roupão caiu-lhe do ombro. Os ombros eram todos iguais. 
Com o frescor da juventude, bela, famosa, sem perspectiva. Na verdade, apenas uma, o plano. Tinha se agarrado a ele, era o que evitava o seu definhamento completo. Sem ele já teria sucumbido, mas sucumbir por sucumbir era como viver por viver. Não era isso. Por isso o plano, por isso. Os últimos dias foram cruciais para levá-la a concluir sobre o definhamento puro e simples, havia estado internada e quase perdera a vida. Droga, álcool, alucinação e quase a morte. Definitivamente não funcionava. Seria uma catástrofe se perdesse a vida daquela maneira, tão fútil, tão repugnante. 
Dois toques na porta antecederam a abertura. Pelo espelho ela reconheceu o visitante, sorriu-lhe. O homem vestia-se de forma peculiar, paletó vermelho, assim como a calça social, camisa branca e gravata rubra. Sua pele era demasiadamente alva. A doença agradava Raira, um ombro diferente. Eram amigos, amantes, cúmplices. Pelo menos na mente dele. João não via como Raira, não podia, nunca poderia, mas era fiel. Não era o único. 
— Este será o último — ela disse ainda presa com os olhos no espelho. 
Ele agarrou um cacho de uvas que descansava em uma bandeja na mesa central. 
— Eu sei. Só falta um detalhe: quem. 
Ela fitou-lhe pelo espelho.
— Ele surgirá — levantou-se e afrouxou a faixa do roupão. 
Agarrou o cabide com a vestimenta para apresentação.
Escuro. A excitação do público, o anúncio. Chamas artificiais perpassaram pelo vasto palco e do alto desceu a plataforma de Raira. As luzes focalizam-na. Vestia-se com mine-blusa branca e saia agarrada de mesma coloração. Trajava botas e luvas claras que se harmonizavam com seu cabelo comprido, alvo. Os olhos acinzentados, envoltos por maquiagem sobressaíam do rosto pálido ao passo que os lábios finos, contornados por batom branco expressavam sorriso. Tinha o corpo bonito à mostra devido ao traje de pouco tecido. Contava dezesseis anos naquela oportunidade. 
Atrás, a banda apareceu quando as luzes do palco se acenderam por completo e o efeito incandescente cessou. Os primeiros acordes da música começaram a ser tocados para o delírio completo dos espectadores. Sem pausa foram apresentadas três canções do álbum atual da cantora. 
No final da última música daquela seleção as luzes se apagaram. Ouvia-se ainda o som dos derradeiros acordes. Quando o palco se acendeu novamente, os holofotes focaram a cantora.
— Boa noite, Peões! — disse Raira Brenemberg do alto do palco para o seu público de aproximadamente quarenta mil pessoas. 
Novo alvoroço.
— É uma honra estar aqui com vocês esta noite. Levantem o Salvo!  
Muitas pessoas levantaram os braços para mostrar um aparelho semelhante a um celular, cuja tela acesa começou a balançar em ritmo impreciso. 
O que aquelas pessoas haviam vivido até aquele momento? A pergunta veio à mente de Raira enquanto respirava com euforia. O suor lhe escorria pela testa maquiada e a pele reluzia por conta da purpurina prateada misturada ao suor. Ela continuou: 
— A próxima música é para todos que sabem viver com intensidade. Àqueles que possuem um motivo para dar a vida. Vou enviar em tempo real a versão que cantar agora para todos que estiverem com o Salvo ligado. 
A canção começou a ser tocada pela banda e as luzes voltaram a piscar multicoloridas

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