18 de outubro de 2018

O Policial Estelar




O Policial Estelar

A luz parecia distante. Também aquele horário; aquela noite... Vilma balançou a cabeça, tentando resgatar um pouco de sobriedade dos confins da alma. Não é tão difícil, disse a si mesma. Basta um passo de cada vez e a soma de todos a levaria para casa. Observou mais uma vez a luz. Ela ainda continuava distante, imóvel, tranquila. Deu o primeiro passo, o pé vacilante, o salto irregular. Na segunda passada, torceu o pé, mas conseguiu se equilibra a tempo de evitar a queda. Sorriu, vitoriosa por ainda se sentir senhora de suas pernas. Não estava tão bêbada afinal de contas. 
A convicção, no entanto, durou pouco. A luz forte atingiu seus olhos subitamente. O som da buzina, do arrastar dos pneus. Levou a mão na frente do rosto instintivamente. Que fosse rápido, indolor. 
Quando abriu os olhos não acreditou no que viu. A iluminação do poste reluzia nos braços do ser que a abraçava. Mãos frias, fortes de ferro? Vilma não tinha certeza, mas o sujeito parecia ser feito de metal, sua cabeça lisa como um capacete de motoqueiro. Os olhos dento de uma faixa negra, duas pedras vermelhas brilhantes. Ele a soltou e disse algo numa língua que ela não pôde compreender. 
Vilma reparou melhor no seu salvador: era um robô. Não, um *metal hero desses seriados japoneses. Definitivamente tinha exagerado nas drogas e bebidas. 
— Pronto, ajustei suas ondas cerebrais para entender minha língua. 
— Quem ou o que é você? 
— Sou um Policial Estelar. Estava perseguindo um criminoso procurado em toda Via Láctea, quando vi a nave dele aterrissar neste planeta. Assim que atravessei atmosfera os medidores da minha nave entraram em pane e perdi meu alvo. Estacionei a nave sobre esta cidade que foi o último lugar que o localizador me mostrava, liguei o modo camuflagem e desci para procurar.
Estava sonhando, deduziu Vilma. Era plausível que estivesse ainda debruçada sobre a mesa metálica da boate, esperando o fim do expediente. Já exausta do trabalho e entorpecida pelas substâncias que a ajudavam a não pensar no que fazia. Ia passar, sabia. Sempre passa e sempre volta. É assim desde que o mundo é mundo. Continuará sendo depois que ela se for. Espere aí! E se ele estiver indo? Se foi atropelada e aquilo fosse o coma? De todo modo também ia passar. Abaixou-se, levou a mão os joelhos e vomitou. Pareceu bem real o líquido quente escorrer pelo seu queixo, a contração do estômago e o ardume da garganta. Reparou que os sapatos metálicos do tal policial do espaço se sujaram com o seu vômito. 
— Desculpe — ela disse. 
— Não se preocupe. Examinei suas funções vitais e deduzi que sua armadura expeliu líquidos que estavam lhe causando mal. É uma função útil. 
— Armadura é? 
— A minha é esta, a T5.600, produzida em L23 para a Polícia Estelar. Ela vem com uma pistola a uma espada de laser. Tem visores telescópios ligados ao banco de dados da Polícia Estelar e aumento de força em 50%. Antes de ser promovido eu tinha uma T4.000 que não tinha espada nem nave que se transforma em robô de combate. 
— Você tem uma nave vira um robô gigante?
— Como todos os Patrulheiros da Polícia Estelar. Como vamos defender os planetas dos monstros gigantes?
Aquilo não podia estar acontecendo, pensou Vilma. Não fazia sentido. A mão metálica do homem espacial repousou em seu ombro. Ele falou: 
— Notou alguém suspeito?
A prostituta gesticulou negativamente, ainda confusa. 
— Ok, vou continuar procurando — o policial afastou a mão do ombro pálido de Vilma, os olhos vermelhos se apagaram do visor horizontal de seu capacete. 
— Procure ajuda médica — finalizou.
Entretanto antes que pudesse deixar o local uma esfera de energia perpassou por ele rumando na direção de Vilma. O homem espacial ágil rápido e se jogou sobre o projétil esférico, usando o próprio corpo de escudo. Uma explosão de faíscas se fez para depois dar lugar ao riso de um vilão. 
— Continua o tolo de sempre, Uper — falou o dono da risada, outro metal hero, pensou Vilma. 
Era um sujeito robótico, tal qual o primeiro, diferenciando-se nos detalhes e cor da vestimenta. Este segundo tinha a armadura negra e o visor acendia em dourado. Já de espada e pistola em punho, aguardava o outro se levantar. 
— Não é tolice proteger inocentes, Mac. Era o que você fazia... — Uper se ergueu.
— Está errado. Sempre defendi o que acho certo. 
— Devíamos estar do mesmo lado! 
Um correu em direção ao outro de espada na mão. O barulho dos sabres luminosos em atrito lembrava Star Wars, pensou Vilma. Que doideira! Ela queria se afastar, mas o show luminoso parecia atraí-la ainda mais, como uma mariposa indo em direção à lâmpada mortal. Os movimentos precisos de ambos os combatentes eram incríveis.
Armaduras, como eram aqueles dois seres sem suas vestes de combate? Assemelhar-se-iam aos humanos? Com ela? Poderiam ser mulheres pobres que se dedicaram aos estudos e galgaram cargos até se tornarem membros importantes da Polícia Estelar? Vilma imaginou que sim. Imaginou que Uper era uma ingênua e inteligente garota do interior que ingressou na Polícia através de um disputado concurso público e se dedicou para ser um exemplo dentro da Corporação, vindo a alcançar uma boa patente recentemente. Tinha caráter, valores aprendidos com os pais e não se curvava à corrupção de qualquer natureza. Um pouco sozinha, verdade, mas de bem com o travesseiro (se é que no espaço se usa travesseiro para dormir). 
Vilma imaginou que Mac era Uper no futuro, depois de perder as esperanças e perceber que as pessoas são essencialmente más, sendo tolice tentar mudá-las. É muita ingenuidade acreditar que é possível salvar alguém; que atitudes isoladas podem mudar o mundo (já pensou a Via Láctea?) Era mais prático assumir sua natureza e viver sem culpa por agir conforme os instintos. Não é errado querer o melhor para si, não é? Não se pode julgar aqueles que fazem a justiça pela qual sonhavam e não tiveram chance de desfrutar. Elas deviam ser amigas. Mac foi um ídolo para Uper por isso a missão era tão especial. Como eram sem armadura?
A espada de Uper cortou o ar perigosamente próxima ao capacete de Mac. Mac se afastou, surpreso. Sacou a pistola e disparou outra esfera de energia, mas dessa vez seu adversário se esquivou habilmente. Quando Uper sacou sua arma e disparou contra Mac, este fez nascer um escudo de energia do antebraço direito que o protegeu com eficiência. 
— Se eu ainda fosse seu professor, estaria orgulhoso — falou Mac, acendendo seu sabre dourado. 
— Sinto-me honrado — o sabre vermelho de Uper se acendeu. 
Os dois começaram a trocar espadadas mais uma vez. Em dado momento as armas se encostaram sem que qualquer um dos combatentes pudesse forçar o outro a se desvencilhar e faíscas em vermelho e dourado iluminaram a rua. 
Vima ainda tinha os olhos fixos naqueles dois seres metálicos. Quanta energia ainda tinham? Pensou que a tal T5.600 fosse movida a energia atômica como um pequeno reator nuclear. Se danificada poderia explodir todo a Terra. O mesmo poderia ocorrer com a armadura negra do vilão Mac que, embora tivesse um visual diferente, parecia ter o mesmo princípio de funcionamento. Aqueles dois alienígenas iriam destruir o planeta enquanto lutavam?
Um barulho diferente, a precisa espada de Uper perpassou pela mão direita de Mac, decepando-a instantaneamente. O sabre reluzente do vilão espacial rodopiou no céu escuro para depois descansar no solo da calçada. Uma chuva de faísca dourada invadiu o ambiente até que Mac pudesse conter as faíscas com a outra mão. O vilão deu dois passos para trás, observando os olhos vermelhos de Uper brilharem em seu capacete. A espada do policial estelar aumentou de tamanho e brilho enquanto avançava na direção do inimigo. O golpe em diagonal foi preciso. Uma, duas vezes, formando um xis. Mac gritou e caiu em câmara lenta. De bruços sobre o chão, o vilão explodiu. 
Não, as armaduras não explodiam como uma bomba atômica, deduziu Vilma ao se aproximar do herói espacial. Pelo contrário, se desintegravam completamente após a explosão. A mão decepada de Mac repousava ao lado, assim como seu sabre agora desenergizado. 
— Descanse em paz, mestre — disse Uper. 
Era o famoso clichê cinematográfico do pupilo que assassina o seu mestre que mudou de lado, pensou Vilma. Estaria Uper destinado a viver o suficiente para se tornar também um vilão? Que teria feito Mac para ser caçado pela Polícia Estelar? Tantas perguntas, mas a terráquea sabia que o homem espacial não as responderia; não tinha mais nada para fazer ali. 
— Minha missão foi cumprida, adeus!
— Espere! Eu não posso ver o seu rosto?
O policial guardou a espada na bainha lateral. Virou de costas depois assentiu. O som de ventoinha de PC se fez pouco antes do capacete metálico soltar uma fumaça e ser desacoplado do pescoço de Uper. Ele então se virou para Vilma e revelou o seu rosto totalmente humano. Os olhos castanhos, o nariz fino e as bochechas rosadas, lisas. A franja castanha escorria pelos cantos da cabeça e iam até os ombros, as orelhas não tinham brincos.
— É uma mulher? 
Uper sorriu e pensou na verdadeira resposta: para Vilma ele era. O cérebro da terráquea ainda alterado para que ela pudesse lhe entender queria que visse uma mulher, alguém que lhe servisse de inspiração e exemplo. Respondeu:
— Sim, igual a você. Agora tenho que ir, adeus! 
O corpo do policial começou a tremular para em seguida tornar-se um raio de luz e subir ao céu em velocidade. Vima ainda ficou olhado para o alto tentando identificar a nave robô ou alguma coisa estranha, mas não pôde ver nada. Esfregou os olhos manchados de maquiagem ainda na esperança de ver alguma coisa, mas inútil. Suspirou, desistiu, sentou-se na calçada e pensou na própria vida insignificante. Era uma nordestina jovem que havia se mudado recentemente para a capital de São Paulo no intuito de ganhar a vida. Muitos sonhos, poucas chances e um vício a levaram a um caminho tortuoso e degradante. Sabe quando você precisa trocar o encanamento de esgoto de uma casa antiga? Vai cavando, vai sentindo a terra úmida, enegrecendo, barrenta e fedida. Quando está perto do vazamento você se atola no barro e desejos humanos e o buraco é muito fundo para que possa sair sozinho. Esta era a condição de Vilma quando foi salva pelo Policial Estelar. 
Tinha mesmo sido salva? 
Não importava. Tinha que voltar para o cortiço e descansar para a noite seguinte. Levantou-se, abaixou a saia curta para cobrir um pouco mais as coxas. Puxou a mine-blusa negra. Então identificou algo: a espada de Mac. Aproximou-se do objeto, abaixou-se e o tocou com o dedo indicador. Nada de choque. Pegou a arma com cuidado e a levantou, constatando que era extremamente leve. Não brilhava mais, mas não importava. Era real! Era sua! Sua chance de também ser uma Policial Estelar. 

Paul Law, Mogi Guaçu 16 de outubro de 2018. 

*Metal Hero - heróis de armaduras metálicas, geralmente policiais ou detetives espaciais que combatem uma organização criminosa espacial. Termo originalmente criado para definir uma franquia de super-heróis japoneses.   

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