7 de dezembro de 2018

UM BRINDE AOS ELFOS, RENAS E CRIANÇAS QUE NÃO GANHAM PRESENTES



Mary se ajeitou no sofá gasto depois de um cochilo. Coçou os olhos com as mãos trêmulas do Parkinson e se espreguiçou. Que horas eram? De certo o marido já tinha saído. As luzes da árvore de natal piscavam em vermelho, amarelo e verde, iluminando a pequena sala, cujo televisor se mantinha desligado, encostado na parede lateral. Já era mais de meia noite, observou no relógio de madeira circular no alto da parede, constatando que Nicolau já tinha partido como em todos os anos. Coitado, ainda tivera o trabalho de desligar a caixa de imagens antes de deixar a casa. Era dele pensar nos outros antes de si mesmo; era sua virtude lembrar de todos. Mary sorriu, ajeitando os pés calçados por meias brancas nas chinelas antigas. Levantou-se e arrastou os pés até a cozinha para tomar um copo de leite antes de dormir, afinal quando amanhecesse teria um grande dia. 
— Ah! Que susto! — disse Mary ao apertar o interruptor de luz — Que aconteceu? Alguma rena morreu? O trenó se quebrou? Os presentes não ficaram prontos? O Mundo se acabou enquanto eu cochilei?
— Nada disso — respondeu-lhe o velho barbudo, empurrando o copo para longe de si — Eu não quis sair esta noite. 
— Não quis sair? Eu estou com muito medo agora... 
Nicolau deu um rápido sorriso. Irônico, desesperador? Só Mary sabia. Sacudiu a cabeça em negação. Estava tudo errado, tudo! 
— Libertei os Elfos, soltei as renas. Como eu podia continuar dormindo em paz depois te tantos anos fazendo isso... 
— Está louco? As crianças estão esperando pelos presentes! 
— Elas vão se virar bem sem mim.  
Mary franziu o cenho por um momento. Pensou em responder, conteve-se. Puxou uma cadeira e se sentou. Há séculos o marido fazia aquilo e em nenhuma ocasião tinha se atrasado. Desistir? Esta possibilidade jamais fora aventada! Nicolau sempre lhe pareceu um velhinho feliz, de risada gostosa e otimista! O que o afligia? A esposa do Papai Noel não precisou perguntar. 
— No início achava que o que eu fazia era importante e correto. Dar presentes! Ora, quem não gosta de recebê-los? Mas os anos foram me mostrando que pouco faço de bom, Mary. Tomemos por exemplo os Elfos que trabalham na minha fábrica de brinquedos. Acha que eles recebem salário? Que trabalham apenas oito horas diárias? De forma alguma! Vamos às renas agora: elas cruzam os céus dos quatro cantos no Mundo em apenas uma noite sem parar para hidratação ou alimentação. Isto é maus-tratos com os animais! 
— Mas Nicolau, todos adoram o Natal. Os Elfos e as renas sabem disso e doam suas vidas para o bem maior que é entregar presentes a todas as crianças! 
— Vou te contar uma grande novidade e aí que vem a principal razão de eu desistir do meu trabalho. Têm muitas crianças no Mundo que não recebem presentes. 
— Não acredito. 
— Vai ouvindo. O trabalho que realizo é ínfimo se comparado ao número real de infantes viventes. Não é só! Há muitas pessoas que acham normal o fato de crianças ficarem sem nada, enquanto algumas ganham diversos presentes. 
— Meu Deus, isto é terrível! Onde está o Espírito Natalino nessas pessoas? 
— Descobri que o Natal é só uma desculpa para fomentar o comércio. Nós dois sabemos o segredo do comércio; que para o produto ser caro, precisa ser desejado. Para ser desejado, precisa ser raro e sendo para poucos é preciso que muitas crianças fiquem sem presentes!
— Eu não sei o que dizer, Nicolau. 
— Não diga. Pegue um copo e me ajude a esvaziar esta garrafa. Vamos brindar em honra dos Elfos, renas e das crianças que não ganham presentes.  

Paul Law, Mogi Guaçu, 07 de dezembro de 2018.

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