14 de dezembro de 2010

Crônicas de Ester: Jacira


Jacira


O ano era o de 1512, a terra era invadida. Os filhos dela eram estuprados, mutilados e mortos. Ela era bela, tinha os olhos amarelos, aguçados, grandes como se despertos, mas não o bastante. Não para aquilo.
Tinha sido capturada por colonos e amarrada ao tronco e rezava aos seus deuses; pedia que viessem, mas era ela a única deusa presente. Disseram-lhe:
— Filha, entrega tua alma a Deus.
Ela chorou sangue. Diante dela, só para ela, surgiu a Dama de Negro, vestida como a nobreza, mas de olhos vazios e negros:
— Entrega — disse ela com ironia.
Jacira tentou disfarçar seu espanto. Os que ali estavam deduziram por delírio, dado os dias que ela ficara ali, amarrada.
— Que veio fazer aqui? — Perguntou para Lady Morte.
— Não lhe parece óbvio?
O jesuíta continuou depois de pigarrear, como se chamasse a atenção propositalmente:
— Se entregar sua alma, irá para o Paraíso; para o Céu. Se não o fizer, irá para o Inferno.
A dama de negro gargalhou:
— É muito engraçado como eles têm explicações para tudo, não acha?
 Jacira ignorou o comentário da irmã e pensou em seu povo, em seus filhos. Respondeu:
— Não é engraçado.
Ela fez uma reflexão do que estava acontecendo naquele momento histórico. Pessoas de outra cultura estavam impondo seu modo de vida aos filhos dela; estavam trazendo um deus europeu; um deus espanhol. Jacira não conhecia o deus espanhol, mas o imaginou cruel demais, afinal que deus permite genocídio? Que deus mata por ganância? Então perguntou ao jesuíta:
— Os espanhóis também vão para o céu? Vão ao encontro de deus?
O homem religioso fez uma pausa reflexiva antes de dizer:
— Por certo que sim.
 — Então prefiro ir para o Inferno.
Lady ficou séria repentinamente. Colocou sua mão no ombro de Jacira.
Ela não sentiu dor, ela não sentiu nada que fosse possível sentir. Não havia mais o que sentir e quando se passaram muitos dias e muitos urubus, ela acordou. Estava ainda presa ao tronco, mas agora tinha força para se soltar. Estava com o corpo decomposto, mas tinha poder para reconstituí-lo, pois depois da morte vem sempre a vida. Ela era a Vida.
Jacira chorou a morte dos seus filhos e quis senti-la em sua carne para não esquecê-la, era assim que as coisas funcionavam com ela. E toda vez que um filho dela é levado por Lady ela ainda sente.

4 comentários:

  1. Paul, gostei muito dessa crônica! O texto como sempre, muito bem escrito e passou sem dúvida todas as angústias que a Jacira sentiu diante dos seu sofrimento.
    Post sempre mais textos como esse!
    Abraços.

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  2. Obrigado, Mariana. Jacira é personagem que representa Vida no mundo de Ester. Ela vai estar em Edissa, se Deus quiser. ^^'

    Um abraço!

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  3. História triste, Paul, mas boa. É uma pena que os homens matem em nome dos deuses em que acreditam.

    E por onde anda Edissa?

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  4. É verdade, Patty... tem tanta coisa que os homens fazem de errado que não caberia em um único texto.

    Sobre Edissa quero lhe dizer de outra forma. Acho que por orkut, não sei se ainda usa ou facebook...

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